Experimental video and self-portrait

Vídeo experimental e autorretrato

Filomena Antunes Sobral

Escola Superior de Educação, Centro de Estudos em Educação, Tecnologias e Saúde,

Instituto Politécnico de Viseu, Portugal

Universidade Católica Portuguesa, Escola das Artes | Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes, Portugal

Daniela Morgado Oliveira

Instituto Politécnico de Viseu/Escola Superior de Educação, Portugal

Abstract

In the development of the relationship between the artist and his artistic creation, the deconstruction of concepts and ideas within the scope of artistic praxis leads to the reflection of the crucial role that the artist has in the conception and meaning of the work. His creative production, in turn, appropriates not only the expressive force of the author to assert itself as an artistic creation, but can also assume to be the reflection of the self, its identity and materializes in the form of self-portrait. The self-portrait expands the artist’s interiority, externalizing concerns and questions, and conveys a subjective point of view about himself and his view of art. But how does self-portrait contribute to self-awareness? And how does the artist reveal himself and communicate beyond his appearance?
Based on these questions, the objective of this paper is to provide a reflection on self-portrait presenting the results of an artistic installation project that involved photographic language in the form of self-portrait and experimental video to represent feelings of disquiet. Influences such as Cindy Sherman, Lais Pontes or Francesca Woodman, whose creations approach the self-portrait in a not only original, but critical style, stand out.
It is a project of academic and artistic nature supported by theoretical foundations. The results allow us to conclude that the artistic installation, which began by presenting a self-portraying self-seeking identity, frees itself from its creator to enhance multiple variable interpretations depending on the observer’s attention.

Keywords: Experimental Video, Photography, Self-Portrait, Artistic Installation.

Introdução

A movimentação autorreferencial no discurso artístico permite constatar que ao longo dos anos vários nomes de diversas áreas artísticas recorreram a estratégias autorrepresentativas não só como meio de criação, mas também como forma de autoconhecimento e expressão crítica. Argumenta Medeiros (2000, 13) que “nomes como Cindy Sherman, Jo Spence, Nan Goldin, Jean le Gac encontram na autorrepresentação pela fotografa e pelo vídeo o único universo adequado às suas estratégias artísticas”. Daí que o processo de autorrepresentação pictórica vincula-se com as interrogações do sujeito e com os desdobramentos que a sua interioridade pode ter. Ou seja, a problematização do sujeito parece ser o ponto de partida, bem como a compreensão de um ser em permanente constituição. Neste âmbito, a fotografia e o vídeo assumem-se como plataformas críticas e revelam um caráter eclético. No domínio da fotografia, salienta Neves (2011, 379) que “o uso experimental e crescente da fotografia materializa-se (…) em práticas artísticas que experienciam a explosão do sujeito(s) e da(s) subjectividade(s): auto-retrato, auto-representação” e, por conseguinte, como ferramenta autorreferencial “o autorretrato expõe as contradições, complexidades, paradoxos ou limites do sujeito”.

Esta abordagem teórica pretende divulgar a experiência de um projeto académico de artes e multimédia que se centra na temática do autorretrato proporcionado por fotografia e enfatizado por vídeo experimental. O objetivo central do projeto foi criar uma instalação artística onde a fusão de ambas as linguagens através do autorretrato pudesse motivar questionamento acerca da identidade e da construção do ‘eu’. Em termos específicos foi desenvolvida investigação teórica e empírica acerca do autorretrato fotográfico e do vídeo experimental com vista a promover a autorreflexão e o autoconhecimento. Em termos metodológicos a conceção e desenvolvimento do projeto partiu da revisão bibliográfica numa sólida pesquisa teórica onde o estudo de exemplos foi fundamental para o aprofundamento dos temas e como fonte de inspiração para a edificação do projeto. Seguiu-se a fase da implementação, com testes, pré-produção, produção, edição e pós-produção e, por último, a conclusão, análise crítica, correções, divulgação e estreia.

Sendo assim, para dar a conhecer o projeto experimental, o texto encontra-se estruturado em três partes: a primeira aborda a teoria sobre autorretrato, a segunda desenvolve o estudo acerca de representação videográfica e a terceira informa acerca do projeto e das suas particularidades. Neste sentido, para além de testemunhar acerca da edificação de um projeto académico, este artigo visa proporciona um pensamento crítico sobre a relação entre o artista e a obra.

Autorretrato

Autorretrato remete para uma representação do sujeito, realizada por ele próprio, independentemente do suporte ou técnica utilizado para o efeito. De acordo com Pessoa (2006, 1) trata-se de um olhar intimista, voltado para si mesmo, uma encenação individual que representa uma projeção pessoal do eu, “um discurso feito na primeira pessoa, de uma autobiografia visual”. Porém, adotamos neste texto a aceção de Gómez-Cruz e Ardévo (2012, 183) para entender autorretrato fotográfico como “aquellas imágenes en las cuales el autor y el modelo representado son la misma persona; es decir, el sujeto se reconoce como autor material de la fotografía y como objeto representado”.

Para além de se constituir como afirmação de presença e comunicação artística, o autorretrato pode assumir também formas de autoconhecimento, exteriorizando inquietações, angústias, pensamentos, influências, provocações, experiências de vida e modos de ver e sentir o mundo que só através da interligação e conexão do autoconhecimento e da introspeção do artista com a arte é possível partilhar (Rauen e Mongoli 2015). Pressupondo um exercício de questionamento e reflexão da individualidade, Rauen e Mongoli (2015, 53), defendem que é possível encontrar neste meio de autorrepresentação algo “mais profundo do que a nossa própria imagem”.

Segundo Pessoa (2006) na procura pela representação da própria imagem, produz-se uma dinâmica de introspeção em que ocorre o autoconhecimento ou o esforço de ver. Neste percurso do autorretrato o artista faz do seu corpo um corpo objeto, oferecendo-o como um objeto ao olhar e, deste modo, pode dizer que “sou um sujeito real, que se constrói como objeto real, pleno em sua autoconsciência, num movimento de pôr-se a si mesmo” (Pessoa 2006, 2). Portanto, o autorretrato não tem a intenção primordial de revelar uma aparência física, mas experimentar outras identidades, criar ilusões e comunicar um ‘eu objeto’ artisticamente. Daí que a forma como o artista se representa depende da maneira como ele quer ser visto, escamoteando alguns traços e evidenciando criticamente outros em favor da mensagem que quer transmitir ou dos assuntos que pretende abordar (Stirle e Fernandes 2014).

Cindy Sherman, por exemplo, utiliza o autorretrato para evidenciar diversos temas sem verdadeiramente se autorretratar, ou seja, são imagens de si, mas que representam outros. O seu intento é refletir para além do documentado, focando o sentido na vertente crítica. Ela cria uma imagem ficcional de si própria trasvestindo-se de estereótipos femininos formulados pela imagética do cinema e vídeo norte-americanos.

Nan Goldin produziu uma série de imagens íntimas que funcionam como autobiografia visual. No seu caso a fotografia funciona como arte de memória e como arte anti mimética (Pessoa 2006).

Em Jo Spence os autorretratos exploram o corpo nu como forma de questionamento. Impera a imperfeição e sobressaem feridas e cicatrizes com a intenção de subverter a noção de uma forma feminina idealizada. A sua obra oferece um ponto de vista contestatário à pressão social para ignorar a desfiguração.

Também Frida Kahlo representa a dor e o sofrimento através do autorretrato. No processo criativo da artista, o autorretrato surge como uma espécie de ensaio para expiação da experiência dolorosa.

Francesca Woodman, por sua vez, distingue-se pelo autorretrato experimental privilegiando impressões do campo afetivo. Para Pereira e Filho (2017, 172) a artista concebe “figuras borradas que parecem metamorfosearem com o mundo ao seu redor” e, por isso, o corpo apresentado nas suas fotografias é “um corpo a ser completado com o olhar, o que sugere imensa atenção e foco interativo do espectador com a obra”.

Também Laís Pontes recorre ao autorretrato para propor diversas identidades imaginárias femininas. Trata-se, para a artista, de uma performance contínua onde múltiplas personalidades são experimentadas. Durante o processo criativo, Pontes privilegia o papel do público, dando-lhe a possibilidade de este interagir com a obra e simultaneamente colocar-se no papel da artista, influenciando diretamente a evolução das personagens.

Albrecht Dürer é notado como o primeiro artista de espírito renascentista a pintar vários autorretratos entre 1493 e 1500. As autorrepresentações do pintor são apontadas como “marcos para a história da introspeção da Idade Média e da Renascença” (Pessoa 2006, 4). Vários outros artistas se destacam por se autorretratarem, como Francesco Maria Mazzola, Rembrandt, Schiele ou Velázquez, entre outros. Argumenta Leite (2015,103) que “Rembrandt, Dürer e Schiele são nomes incontornáveis na produção de simples autorretratos”. Na história do autorretrato sobressai que esta representação artística assumiu tradicionalmente duas vertentes: “o autorretrato como relevando da manifesta intencionalidade de o artista se representar como indivíduo” e o uso do corpo “enquanto estudo ou até como incarnação de uma personagem” ou autorretrato simbólico (Leite 2015, 103).

Observamos, portanto, que o autorretrato propõe diversas formas de representação para dar voz ao universo íntimo do artista, abrangendo dimensões de autorreflexão e auto-experimentação. Dialogam com inquietudes e projetam o introspetivo, promovendo considerações acerca do mundo e da arte e posicionando-se criticamente no contexto social.

Representação videográfica

De modo diferente da fotografia, que tem a característica de imobilizar um determinado tempo numa imagem fixa, na dimensão audiovisual, com som e imagem em movimento, como é referido por Fortuna (2012, 16), “O tempo passa, permitindo a transformação de formas, intenções e sentidos”, o que significa, segundo a autora, que as poses ganham ‘vida’, continuidade, passando por isso mesmo, a ação a ser um dos principais focos. Carrilho (2009) advoga que a imagem-movimento é uma forma de aprofundar um novo sentido de ver e perceber a imagem.

Neste âmbito, destaca-se o video experimental como incentivo à manipulação estética, ao experimentalismo e ao hibridismo. Esta ferramenta videográfica afasta-se do cunho comercial das práticas audiovisuais massificadas tradicionais para dar voz à visão autoral e independente e evidencia sobretudo uma vertente crítica, inovadora e autónoma para ampliar a expressividade artística. Deriva da influência da videoarte onde Nam June Paik e Fluxus são referências inevitáveis. Paik foi pioneiro em perceber o potencial do vídeo como forma artística para a instalação em exposições em galerias e em eventos ao vivo (Meigh-Andrews 2013, 39) e sob a égide do Fluxus surgiram obras de videoarte metalinguísticas que deliberadamente procuravam surpreender o espectador, por atração ou, outras vezes, por repulsa (Cruz 2012, 20). Portanto, no vídeo experimental a estética compósita agrega elementos de proveniência imagética e sonora diversa e concerta várias referências. Machado (2010, 23) define este tipo de produções pela sua “condição de quase absoluta invisibilidade” uma vez que estas produções audiovisuais não são estandardizadas e propõem “temáticas e estilos que escapam às regras do mercado internacional” porque são sobretudo realizadas “em bitolas e formatos não comerciais”. O autor recorda que “até os anos 1960 os filmes costumavam ser classificados como “documentários” ou “ficções” e não havia muita margem de manobra para sair dessa dicotomia simplificadora” e sublinha que “no campo do vídeo, o equivalente do cinema experimental era a videoarte, que tinha horizontes e propostas estéticas semelhantes” (Machado 2010, 25). Neste sentido, de acordo com a mesma fonte, o conceito de experimental comporta mais do que uma demarcação da produção mainstream, pois “a ênfase desse tipo de produção está na experiência, no sentido científico de descoberta de possibilidades novas” (Machado 2010, 25). Há quem fale em vídeo de invenção, focado no inesperado, underground, motivado pela exploração de estilos e formas ou videografia de expansão, que inclui múltiplos modos de expressão. O certo é que este tipo de conceção audiovisual sobressai pelo experimentalismo e pela criatividade. Machado (2010) refere que muitos vídeos são criados para serem projetados em roupas brancas de bailarinos em situações performáticas ou em várias telas paralelas e simultâneas, em vez de serem vistos em salas de cinema ou ecrãs. De entre várias referências mencionadas, Machado indica o trabalho de Enrique Alvarez e o seu vídeo Espectador (1989) como uma obra experimental onde a ambiguidade da condição do espectador de televisão é explorada.

Na arte, o vídeo teve grande influência em vanguardas como a Conceptual Art, Body Art ou Action Art (Happening), movimentos onde o corpo era o elemento privilegiado. Ribeiro (2014, 163) destaca que a partir dos anos 1960 “muitos artistas concebem o próprio corpo como lugar de construção de sentidos, investigação e génese de realidades novas, radicais e subversivas” e sublinha que “a conexão com os meios tecnológicos transforma o corpo e o vídeo em dispositivos híbridos produtores de novas experiências estéticas”. A partir do próprio corpo como linguagem, alguns artistas apropriam-se do vídeo como recurso para discussões estéticas e sociais.

Os trabalhos performáticos de vídeo desenvolvem experimentações estéticas com o corpo e o potencial da edição (corte, efeitos ou montagem) proporciona leituras fragmentarias e multifacetadas que comunicam as perspetivas do artista e, assim, “o vídeo torna-se linguagem plástica audiovisual onde som e imagem compõem novos discursos do corpo” (Ribeiro 2014, 164). O vídeo é utilizado de forma consciente como ferramenta de crítica e, em alguns casos, colocado ao dispor do autorretrato artístico.

De facto, a criação autorreferencial no campo do vídeo foi uma das propostas estéticas que acompanha a criação videográfica artística desde o seu início. E para Varela (2010) o vídeo parece permanecer hoje uma linguagem que se presta a trabalhos com maior significado pessoal, ou vídeo autorreferencial. Ou seja, “creaciones en las que el artista es con frecuencia protagonista de sus obras” (Varela, 2010, 74). Com efeito, na contemporaneidade, afirma-se a relação do vídeo com a manifestação da subjetividade e a representação do ‘eu’ com propósitos culturais, sociais e artísticos variados.

O projeto

De acordo com Pessoa (2006, 45) “o que define o homem e o diferencia dos outros seres é a capacidade de refletir sobre si ou ter consciência de si mesmo. Percebemos e pensamos o mundo a partir dessa consciência autorreflexiva. Isso define nossa presença no mundo” o que significa, no entender da autora que “estamos presentes em cada pensamento, em cada perceção, desejo e ação”. Por conseguinte, “quando o artista se autorretrata, ele está exercendo essa capacidade intrínseca autorreflexiva. E a autorrepresentação implica uma complexidade de procedimentos, de recursos e eventos intercambiáveis” (Pessoa 2006, 45). É justamente esta construção artística complexa que o presente texto testemunha.

Neste sentido, pretende-se, neste ponto, explanar o processo de autorrepresentação de perturbações intrínsecas à subjetividade da artista. Embora partindo da representação de si própria, o objetivo do projeto não é exibir a aparência física da autora, mas revelar o conteúdo subjetivo do seu mundo interno ou apontar para a auto-perceção de estados emocionais e exteriorização dos mesmos. Trata-se da produção de algo individual para desfrute coletivo numa tentativa de compreensão mais profunda do ‘eu’, ou uma forma de personificar a experiência interna, pois o autorretrato amplia a interioridade, exteriorizando inquietações e questionamentos, e transmite um ponto de vista subjetivo acerca de si e da sua forma de ver a arte.

Partindo desta explanação, o projeto incita a uma reflexão sobre o autorretrato através de uma instalação artística que engloba a linguagem fotográfica na forma de autorretrato e o vídeo experimental para destacar sensações de inquietação. Trata-se de uma demanda interna ao sujeito vinculada em questões pessoais.

No início imperaram múltiplas escolhas. A escolha do meio, da técnica, do tema, dos conceitos, do material, do espaço e da sustentação teórica. Foi selecionada, então, a fotografia (autorretrato) e o vídeo experimental. Através da fotografia estabeleceu-se a base para a sobreposição do vídeo num caminho rumo ao autoconhecimento.

Portanto, o projeto consiste em três fotografias de igual dimensão, conjugadas com vídeo experimental, onde são exploradas três inquietações da artista. É uma autorrepresentação com expressividade sobretudo corporal, ou seja, procura-se evitar expor a feição através do rosto, trabalhando mais o corpo como forma de expressão.

Para a concretização das fotografias houve uma clara influência do trabalho de Francesca Woodman. A artista, na concretização das suas obras, tira partido de uma técnica que implica a utilização de altos valores de exposição, para assim criar um efeito de borrão. Esta técnica permitia conferir à fotografia uma sensação de mistério, algo que influenciou diretamente a conceção deste projeto. Neste sentido, decidiu-se aplicar um alto valor de exposição em todas as fotografias do projeto de forma a obter resultados semelhantes nos três autorretratos. Utilizou-se ainda o efeito fotográfico que é a dupla exposição. A finalidade pretendida era a sobreposição de várias imagens fotográficas de forma a criar um efeito surreal e transmitir a sensação de inquietação. Para explorar a técnica foram realizados alguns testes de exposição.

O discurso imagético é feito na primeira pessoa para transmitir sensações subjetivas de inquietação, medo e ansiedade. A figura ocupa a parte central do plano e a referência de localização é um espaço despojado ao qual a personagem parece estar confinada. Há todo um esforço cenográfico para projetar a idealização de isolamento onde a inquietação, o medo e a ansiedade invadem o psicológico e o espacial. Existe a ambição de criar uma sequência que simule o mesmo espaço, embora visto de perspetivas diferentes. As dissemelhanças mais notórias devem ser ao nível do posicionamento do corpo e da sensação que a figura, em conjugação com imagem em movimento e sonoridade, potencia.

A primeira fotografia representa a inquietação da artista (figura 1).

Figura 1 – Fotografia final 1

Uma vez que o posicionamento do corpo é um elemento importante para o desenvolvimento da expressividade, nesta fotografia a figura coloca-se numa posição desconcertante. A imagem foi completada por um registo de vídeo com o intuito de reforçar o sentimento de inquietude. A inquietação carateriza-se pela apreensão excessiva ou preocupação exacerbada derivada de expectativas projetadas. De cordo com Ramos (2015, 21), nem sempre os indivíduos conseguem identificar as suas preocupações como excessivas “eles relatam sofrimento subjetivo devido a constante preocupação, têm dificuldade em controlar a preocupação, ou experimentam prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes”.

Depois de todas as captações (Nikon D3100) e de a primeira imagem estar editada (imagem constituída por uma série de 5 fotografias editadas em Adobe Photoshop, cada uma com quatro segundos de exposição) transportou-se este conteúdo para o programa Adobe Première, no qual foi possível fazer a sobreposição e ajustes. Em termos técnicos, nesta fase trabalhou-se sobretudo com ferramentas de opacidade, correção de cor, velocidade e efeitos de transição, tanto de vídeo, como de som. O vídeo foi editado com cortes rápidos, para acentuar o dinamismo da representação da inquietação. A informação foi concentrada em 30 segundos e para complementar o produto foi produzida uma faixa sonora na qual sons de relógios com diferentes tempos e batidas e o som de vento foram interligados de modo a enfatizar o sentimento a transmitir.

Em relação às outras duas fotografias e vídeo, estes seguem o mesmo padrão de conceção e desenvolvimento da primeira imagem, utilizando o mesmo procedimento, quer em termos técnicos, quer em termos narrativos, variando apenas a sensação dominante a comunicar.

Assim, a fotografia 2 está relacionada com o medo. O medo é um sentimento de perturbação derivado da ideia de um perigo real ou aparente. Segundo Baptista, Carvalho e Lory (2005, 268) o medo é um dos descritores mais utilizados para “descrever um estado emocional desagradável de apreensão ou tensão, acompanhado por sintomas de ativação fisiológica, como, por exemplo, palpitações, dificuldades em respirar, tonturas, suores, sensações de calor e frio ou tremores, desencadeados por uma ameaça real ou antecipada”.

Portanto, na fotografia 2 foram sobrepostas imagens metafóricas para acentuar o sentimento de medo. Relativamente à sonorização e, num sentido de concordância com o piso de madeira do espaço, foram utilizados sons como passos na madeira cada vez mais próximos e o ranger do abrir e fechar de uma porta.

Figura 2 – Fotografia final 2

A fotografia 3 representa a ansiedade. Este é um dos mais comuns transtornos psiquiátricos e resulta em grande sofrimento e importante comprometimento funcional (Ramos 2015). Com efeito, “ansiedade é um sentimento vago e desagradável de medo, apreensão, caracterizado por tensão ou desconforto derivado de antecipação de perigo, de algo desconhecido ou estranho e pode ser tão intensa e desagradável que impede o funcionamento adequado do indivíduo” (Ramos 2015, 6). Baptista, Carvalho e Lory (2005, 268) realçam que “a ansiedade pode incluir a tristeza, a vergonha e a culpa, como pode, igualmente, ser composta por cólera, curiosidade, interesse ou excitação”.

Na fotografia 3 procurou-se encenar o sentimento desagradável de mal-estar, tremores, coração acelerado, sensação de falta de ar. Uma mistura de emoções na qual predominam as duas perturbações anteriormente representadas – a inquietação e o medo.

O sentimento de ansiedade foi ainda reforçado pelo som de gotas de água a cair, pelo som de uma janela a bater devido ao vento e pelo ruído do dedilhar agudo de unhas numa superfície.

Figura 3 – Fotografia final 3

Exportada a união de cada fotografia com a edição de vídeo e o respetivo som obteve-se uma composição de 90 segundos de um produto de vídeo experimental. A mensagem veiculada é a representação de sensações de ansiedade, inquietação e medo que, por vezes, invadem a interioridade. Transtornos que perturbam o tranquilo funcionamento do ‘eu’ e que podem levar a sentimentos extremos de morte ou catástrofe iminente que provocam “dificuldade de concentração, confusão, aceleração do coração, palpitações, falta de ar, dificuldade para falar e um enorme medo de morrer” (Ramos 2015, 11).

Finalizada a parte visual e sonora, para a instalação artística procurou-se criar uma estrutura que privilegiasse tanto as fotografias, como os vídeos correspondentes.

Em termos visuais e técnicos, o que se decidiu fazer para obter este resultado, foi construir um painel com três partes, em ângulos de 45 graus, no qual cada parte, era destinada à projeção de apenas uma fotografia e o respetivo vídeo. Com esta solução, procurou-se criar a perceção do espaço como se fosse um só. Ainda nesta etapa, foi decidido que as três fotografias iriam ficar sempre fixas, somente a apresentação dos vídeos seria intermitente, um de cada vez, para apreciação de cada sentimento representado.

A instalação com os autorretratos (figura 4) objetivou proporcionar uma ambiência total onde o recetor pudesse imergir na obra, por isso a composição do espaço foi pensada de forma a envolver o espetador na manifestação de sensações que a exteriorização do ‘eu’ reflete.

Figura 4 – Espaço da instalação

Neste caso, quem se autorretrata, para comunicar uma interioridade de medo, inquietação e ansiedade, vê refletido numa instalação artística o resultado da sua introspeção. Então, o autorretrato é uma imagem projetada, ampliada pelo movimento e pelo som que ascende ao estatuto de obra imagética emancipada. É uma forma de autoconhecimento e repetição. O ‘eu’ é repetido três vezes em forma de representação, multiplicado em três sensações em que a figura se repete, mas representa ações diferentes. A observação da obra fomenta desconforto pelo contacto com as perturbações transmitidas, mas ao mesmo tempo comodidade pelo desfrute da obra.

Considerações finais

Multiplicando-se a autora em três personagens intrínsecas a si para expressarem sensações internas preocupantes, representou através do autorretrato, realçado por vídeo experimental, desdobramentos das suas características numa tentativa de autoconhecimento que culminou numa instalação artística. No seu conjunto a obra motiva o observador a criar uma interpretação, permitindo-lhe imergir nela.

A conceção do projeto foi desenvolvida em três etapas distintas, mas complementares. A primeira fase envolveu a criação dos autorretratos onde a postura corporal foi trabalhada de forma a acentuar a transmissão de sentimentos perturbadores pertencentes à identidade da artista. O espaço cenográfico procura acentuar a centralidade da figura e a noção de isolamento. As imagens são sempre frontais, o rosto dissimulado pela postura, as dimensões são as mesmas e o cenário procura simular uma continuidade espacial, variando o enquadramento. O local foi escolhido para destacar a figura e as suas perturbações. O autorretrato da encenação de um sujeito tomado por inquietação, medo e ansiedade. Figuração de si para os outros.

Para realçar o transtorno inerente aos autorretratos, a segunda etapa misturou a produção de vídeo, ou um objeto videográfico de caráter experimental, que sobrepõe ação e movimento numa superfície plana e estática. A movimentação da imagem, realçada por sonorização, enfatiza a perturbação representada.

Tendo por base a fotografia na forma de autorretrato e vídeo de configuração experimental, a terceira etapa transpôs para um espaço expositivo uma composição transformada em objeto de arte. A imagem, reforçada pela sonoridade, torna-se simbólica e transporta o observador para a dimensão de interioridade da artista. O conjunto dos três autorretratos e a peça de videografia constituem a instalação artística. Nesta, a disposição das imagens, num painel com três partes em ângulos de 45 graus, e o compasso de visualização ritmado pelo vídeo, exigiram uma sala sem iluminação para focar a atenção na obra. A forma como a instalação foi produzida estabelece uma dinâmica de foco ora na fotografia, ora no conjunto da composição com imagem, vídeo e sonoridade. E, por fim, a obra, que começou por apresentar um autorretrato indagador da identidade, liberta-se do seu criador para potenciar múltiplas interpretações variáveis em função da atenção do observador.

Porém, proporcionou, de facto, uma maior dimensão de autoconhecimento por meio do autorretrato.

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