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“The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore” of William Joyce and Brandon Oldenburg: when sound is dominant in building a narrative of text and images

“The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore” de William Joyce e Brandon Oldenburg: quando o som se mostra dominante na construção de uma narrativa de texto e imagens

Helena Maria da Silva Santana

Universidade de Aveiro, Portugal

Maria do Rosário da Silva Santana

Instituto Politécnico da Guarda, Portugal

Abstract

Through the short film “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore” by William Joyce and Brandon Oldenburg, with music by John Hunter, we intend to realize how this component constructs the poetic and affective imaginary of the work. Facing us with a film without words, we perceive that all the imaginary is constructed in the discourse of images and sounds. We know that the sound component was designed in close collaboration with the filmmakers. In this sense, it comes from a proposal made by William Joyce and Brandon Oldenburg, in the sense that the musical component is based on the song “Pop Goes the Weasel”. The composer, with this information, outlines his work proposal which, in addition to citing the proposed source, calls the “Suite”. In our work, it is our intention to understand how the sound is constructed in order to elucidate these contents, but also the techniques of composition employed. We will look at how the composer integrates the song through the use of intertextuality, as well as how the proper elements of the Suite form are shown. Because Suite is a Baroque form, we will try to understand if its constituents demonstrate the elements present in the Affect Theory, popular theory at the time in the determination with expressive contents of a work. With this film, we realize that music, emphasizing the image, builds another level of meaning, another way of experiencing life and art.

Keywords: Music Film, Suite, William Joyce, John Hunter, Musical Borrowing.

1 Introdução

Nothing is original. Steal from anywhere that resonates with inspiration or fuels your imagination. Devour old films, new films, music, books, paintings, photographs, poems, dreams, random conversations, architecture, bridges, street signs, trees, clouds, bodies of water, light and shadows. Select only things to steal from that speak directly to your soul. If you do this, your work (and theft) will be authentic. Authenticity is invaluable; originality is non-existent. And don’t bother concealing your thievery – celebrate it if you feel like it. In any case, always remember what Jean-Luc Godard said: “It’s not where you take things from – it’s where you take them to.” (Jarmusch 2004, s.p.)

A proposta fílmica, “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, de 2011, escrito e dirigido por William Joyce e Brandon Oldenburg, com música do compositor John Hunter, mostra-se incomum. Dotada de uma beleza peculiar, a maneira como os autores delineiam os conteúdos e as formas, os sons e as cores, as tensões e as distensões, os ideários e os imaginários que nos são oferecidos, revelam uma mestria maior da sua parte, dizendo-se arte. Todos estes elementos concorrem para a determinação desses mesmos conteúdos para, sem um discurso palavra que enforme uma condução outra dos discursos som e imagem, pudesse ser mais homogeneamente percebido por todos aqueles que se dispõem ao seu fruir. Neste fazer, surge a mestria dos autores, mas, igualmente, a capacidade de se ver e revelar, através dos sons, das cores e das imagens, do espectador. Enformando um conteúdo expressivo que se faz de emoções e contradições, mas também de revelações e ocultações várias, “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, surge uma proposta direcionada, num primeiro olhar, quiçá desatento e desinformado, a um público mais jovem, mas, que, num segundo olhar, mais atento e informado, se mostra essencialmente direcionado para um público adulto, e ousamos dizer, informado e culto. A história narrada, incidindo sobre a vida de uma personagem em particular, Mr. Morris Lessmore, questiona o imaginário de uma vida de forma subtil, mas, eficaz. No seu dizer, os autores, através de todo um discurso duplo, mostram que, a um aspeto que pode ser visto como negativo, a tempestade inicial e toda a destruição nela envolvente, se segue sempre um aspeto positivo, e vice-versa. Assim, a uma incapacidade primeira de escrever surge a escrita, à tempestade a bonança, à improdutividade a possibilidade, etc. Este facto conduz a uma subtil forma de leitura da realidade, daquilo que poderia ser visto como simples e inadequada destruição, para uma leitura construtiva de si, do outro, dos tempos e dos lugares que são vida e realidade. Assim, tudo no filme se mostra, faz e diz esperança. Em outro, “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, encontra-se, no nosso entender, numa categoria de filmes onde a música se apresenta fundamental para o delinear, o definir e o construir do imaginário e do ideário oferecido, pois não encontramos um discurso falado, um discurso de palavras que nos enforme de forma mais direta e restrita a sua leitura. Este facto é, no nosso entender, relevante para o desenvolver dos conteúdos discursivos som e imagem. Os autores possuem unicamente estes meios para conceber e expor as suas intenções formativas e expressivas.

É do nosso conhecimento que a produção de conhecimento específico sobre a função da música e do sonoro, naquilo que constituiu a sua determinação a nível fílmico, bem como da sua importância na fixação e construção dos seus conteúdos dramáticos, emotivos, imagéticos e expressivos, se tornou fundamental logo após a possibilidade da gravação sonora. Se numa primeira fase se estava refém da capacidade ilustrativa, discriminativa e performativa dos músicos intérpretes que concretizavam a sonorização ao vivo das imagens, reféns da sua capacidade performativa, mas também da de uma sua gravação sonora, após esta fase, os autores puderam controlar de forma mais eficaz essa componente da obra, através de uma ação ponderada e controlada sobre o discurso, aceitando ou rejeitando aquilo que lhe era proposto pelo compositor.

Percebemos então que os autores, desenvolvendo uma proposta de obra diferenciada, nos apresentam uma outra definição do seu objeto arte tanto ao nível dos conteúdos técnico expressivos, como ao nível do seu som e imagem. No que concerne o filme “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, escrito e dirigido por William Joyce e Brandon Oldenburg, com música de John Hunter, é nossa intenção apresentar essa mesma forma de fazer e dizer a arte, bem como uma proposta de análise da sua componente sonora e musical. Audaciosa e eficazmente executadas, diferenciam-se radicalmente do comumente apresentado, seguindo uma forma particular de se mostrar discurso, imagem, som e arte.

2 O filme de animação - “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”

“The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore” não possui, como já referido, um discurso falado que nos seja proposto na sua forma mais convencional. Em outro, poucas são as informações e sugestões escritas que nos possam direcionar e enformar essa mesma informação. Nesse sentido, toda uma narrativa é proposta somente nos discursos som e imagem. Dirigido e escrito por William Joyce e Brandon Oldenburg venceu, no ano de 2012, o Óscar de melhor curta-metragem de animação1. Realizada nos Moonbot Studios, da cidade norte americana de Shreveport, no Estado do Louisiana, a sua componente musical, da autoria de John Hunter, mostra-se inovadora e essencial para a determinação dos conteúdos discursivos do filme. A sua produção esteve a cargo de Lampton Enochs, Trish Farnsworth-Smith e Alissa Kantrow, sendo o guião da autoria de William Joyce. Segundo os autores, o filme foi inspirado no livro “The Fantastic Flying Books of Mr Morris Lessmore” que teve como fonte de inspiração a personagem “William Morris”, um editor de livros infantis da HarperCollins. O filme e a narrativa iniciam mostrando o personagem principal, Mr. Morris Lessmore, sentado na varanda de um hotel rodeado de livros. Do ponto de vista sonoro, os autores delineiam o sonoro de forma a que o espectador perceba a passividade e pacatez da vida que decorre. Esta decorre de uma forma calma e pacífica, tentando a personagem dar largas à imaginação, buscando na leitura, mas também, no usufruir dos espaços e tempos de uma vida, o ímpeto necessário ao processo criativo e, consequentemente, à escrita e à redação de um livro. Percebemos ao longo da narrativa, que se encontra numa cidade e num hotel em particular, tentando dessa forma encontrar os meios necessários ao ato criativo e, assim, escrever o seu livro. Contudo, rapidamente a passividade da cena e da vida se transformam, dando lugar a uma forte tempestade, ao turbilhão de emoções que se iniciam, ao medo e ao pânico que toda a situação potencia. A narrativa do filme edifica-se a partir desse momento inicial, ilustrando o rigor da ação que enfoca na ilustração de uma forte tempestade – um furacão2.

A música, composta tanto para diferentes formações instrumentais, como para instrumentos solo ou a totalidade de uma orquestra, ilustra de forma magistral estes momentos. De uma gentileza, subtileza e passividade inicial, transforma-se em agitação e aceleração furiosas, os elementos discursivos e musicais aí concorrendo. De acordo com a intenção expressiva do autor, do formar e informar discursivos, bem como das características técnico-estilísticas da proposta obra, o compositor efetiva o seu sonoro nas componentes formais e discursivas propostas. Pela paleta timbrica que vai desenhando, pelas texturas que vai propondo, pelas formas musicais que vão transparecendo, ilustra o discurso imagens e, consequentemente, os conteúdos imagéticos e expressivos do discurso fílmico. A música e o sonoro, fazendo-se nas escolhas das tonalidades, das harmonias, dos ritmos, das métricas, das texturas, dos tempos e das formas capazes de ilustrar as intenções emotivas e expressivas do discurso imagem. De forma simultânea, a narrativa imagem, no contraste contínuo e constante das cenas que nos são propostas tanto em escala de cinzento, como numa paleta de cores vibrantes, sugere-nos uma ambivalência de sentidos, de formas de ser e estar, de se dizer e revelar, que se redesenham nas cores das imagens mas, também, nos sons e paletas de cores não só timbricas, como instrumentais3.

Nos contrastes sonoros, são-nos sugeridos os mesmos factos do discurso imagem. Neste sentido, a música surge para diferentes formações instrumentais de maneira a enfatizar as componentes do discurso imagem, mas também da sua forma musical base – a Suite -, bem como as características subjacentes a cada uma das suas partes/peças, as sensações e emoções nelas descritas, pois que se relacionam com o conteúdo expressivo das cenas/narrativa, e a intenção do discurso imagem. Sendo composta por um conjunto de pequenos momentos musicais sequenciais que se vão determinando de acordo com aquilo que querem evidenciar, mostram-se diferentes não só nos seus componentes formais e discursivos, mas também nas emoções e afetos anexos. Do ponto de vista instrumental, surge o clarinete ou o piano como instrumentos solo, ou a orquestra, para momentos de maior densidade narrativa e emotiva, ou o uso de ruídos próprios aos elementos imagem que, entretanto, se vão narrando: em exemplo, o ruído do vento, da bicicleta ou dos objetos caindo. Em outro, temos a caracterização do personagem principal através de uma canção em particular, de forma a pudermos perceber a sua natureza emotiva, mas também do uso de um procedimento em particular, a intertextualidade. De acordo com a intenção expressiva do autor, as características estilísticas da obra, a paleta timbrica que desenha, as emoções e afetos que intencionalmente produz, mas também o discurso narrado que nos exorta, o compositor surge um construtor, mas também um manipulador, tanto de si, como dos outros4.

Sendo composta por um conjunto de pequenos momentos musicais sequenciais, a componente musical, vai-se determinando ao longo da narrativa de acordo com aquilo que os autores pretendem evidenciar. Elucidando uma forma primeira de suite, enquanto sequencia de momentos/danças musicais de natureza contrastante e diferenciada, a obra se diz, contudo, contínua, como contínua é a vida. Esta característica revela-se fundamental para a caracterização dos momentos musicais que, de contrastantes, se mostram ao nível do estilo, da função, mas também de todos os elementos que compõem o discurso musical, a saber: ritmo, métrica, melodia, harmonia, timbre, dinâmica, etc. Simultaneamente sabemos que ao compositor foi proposto que se baseasse num tema de uma canção popular em particular para enunciação dos seus componentes discursivos. Os realizadores queriam que a personagem principal, Mr. Morris Lessmore, tivesse uma identidade musical própria, propondo a canção “Pop Goes The Weasel”. Este facto foi considerado pelo compositor no momento de concretização do ato criativo, dando lugar à manifestação de uma forma particular de empréstimo musical. Neste fazer, o compositor confronta-se com a necessidade de tratar esta peça como um material temático e motívico. Conhecer de que forma usa as ideias retiradas de outro indica-nos a maneira como utiliza o material tomado de empréstimo. Sendo que possuímos diversas formas de utilizar e empregar esse mesmo material, devemos olhar para o mesmo, tentando identificar os diferentes tipos de empréstimo musical que poderão estar em utilização. Nesse sentido, e se ao compositor é pedido que se confronte com um material pré-enformado, a nós é-nos pedido que nos confrontemos com diferentes problemas na identificação, não só da fonte, como da maneira como surge utilizada, e, ao não ser possível, proceder a uma sua identificação de forma rápida e eficaz (Burkholder 1994). Burkholder define o conceito de empréstimo musical, como o ato de usar um “elemento” (ou “elementos”) de uma obra musical pré-existente, numa nova obra. Neste sentido, o compositor pode utilizar o que toma de empréstimo de várias maneiras, sendo que o elemento tomado de empréstimo pode ser repetido, variado e transformado a vários e diferentes níveis, surgindo, segundo a sua intenção, de forma mais ou menos reconhecível ao ouvinte. O nível de transformação da fonte, bem como o nível a que se aplica o ato de empréstimo, enforma o tipo de ação que se faz: citação, alusão ou paráfrase. Especificando diferentes níveis de transformação musical, as ações de empréstimo musical, e, consequentemente, de intertextualidade, surgem aplicados tanto ao nível de uma melodia, como de um plano formal, um plano estrutural, etc.5.

A intertextualidade, ou o uso destas, ou outras categorias de empréstimo musical, mostram-nos então que, em “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, a personagem principal, surge caracterizada através dos elementos constituintes de uma canção em particular – “Pop Goes The Weasel”. No desenrolar do filme e da narrativa, este material será alvo de diferentes intervenções por parte do compositor, intervenções tanto técnicas como estilísticas e estéticas, mormente aquelas determinadas pelo empréstimo musical, pela intertextualidade e, neste caso particular, ousamos dizer, pela intermusicalidade6. Através de diferentes processos de manipulação do material a nível melódico, harmónico, rítmico, métrico e timbrico, o compositor alcança diversos graus de variação e releitura do sonoro, recorrendo, no nosso entender, a diferentes formas de intertextualidade. No caso de “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, e a canção “Pop Goes The Weasel”, o autor expõe as categorias de variação, citação, alusão e paráfrase propostas por Burkholder (1994), em diversos momentos da narrativa e do filme.

Em outro, podemos predizer o uso e aplicação do conceito de Leitmotiv7. Caracterizando musicalmente o seu personagem, o compositor, em estreita colaboração com os realizadores, criou uma atmosfera emocional própria para Mr. Morris Lessmore. A partir desse momento, o trabalho de composição engloba o uso desta melodia em particular, mas também o uso de diversas técnicas de variação, fragmentação, citação e paráfrase que teremos a oportunidade de analisar e desocultar. O compositor não pretendeu que a mesma surgisse de forma pura, mas sempre transformada. Este facto induz a aplicação das diferentes categorias de empréstimo musical.

2.1 O discurso imagem de “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”

“The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore” passa-se na cidade Norte Americana de Nova Orleans. A história inicia com a personagem principal, Mr. Morris Lessmore, sentado na varanda de um quarto de um hotel no bairro francês da cidade. Rodeado de livros, a personagem pretende escrever o seu próprio livro de memórias, estando em processo de criação. De repente, uma tempestade atinge a cidade e tudo se transforma. Os livros, as cadeiras, as pessoas, tudo voa, num instante de fúria e destruição sem igual. No meio da tempestade, o livro que Mr. Morris Lessmore se encontra a escrever vai igualmente pelo ar, levado pela ventania que se faz sentir, assim como ele e todas as palavras nele contidas, desfazendo-se no ar. Numa tentativa desesperada para se salvar, assim como ao seu livro, Lessmore agarra-se a tudo o que encontra. O vento é, contudo, impiedoso e, quando no olho do furação, é engolido para depois ser expelido sobre a cidade. A sua única preocupação continua a ser o seu livro. Este livro, representa, percebemos depois, a sua vida8. Tentando salvar o seu livro, Mr. Morris Lessmore agarra freneticamente o objeto. Contudo, esta ação, inglória, não atinge os seus objetivos, e tudo se desfaz. Vemos depois de momentos dramáticos de incapacidade e frustração face às forças destruidoras da natureza, que o desequilíbrio e a inarmonia dão lugar novamente à tranquilidade e à paz. Assim é a vida. Nada permanece, tudo se transforma e, mais cedo ou mais tarde, tudo passa.

Após a tempestade, e já na sua fase de resolução, tudo o que foi sugado e arrastado pelo furacão, e que se move freneticamente no ar, perde energia e tomba no solo. Vão caindo as casas, os livros, as bicicletas, os utensílios, as pessoas. Mr. Morris Lessmore também cai, bem como o seu chapéu, a sua bengala, o seu livro. Encontrando-se novamente no solo, encontra também a cidade, e tudo à sua volta, que agora se revela completamente destruído. O compositor incorpora, para além da narrativa musical mais tradicional, sons da natureza e da vida de modo a melhor ilustrar e capacitar o seu sonoro, pois que um outro espaço de som, aquele da paisagem e da vida, se devem dizer. Depois disso, Mr. Morris Lessmore, mas também o seu livro, se encontram e, sentado no chão, olha em volta, tossindo. Ao tossir, regurgita letras e palavras, um conteúdo que se revela ser o conteúdo do seu livro, preso no seu ser e ter.

Contudo, impossibilitado de juntar as letras e as palavras, caminha pelas ruas repletas de destruição, mas também de páginas de livros, de esperança e uma outra possibilidade de se mostrar vida. Uma outra possibilidade de vida, mas também de esperança, surgem na visão de uma mulher que se aproxima voando suspensa por livros. Esta mulher aparece colorida por oposição aos tons cinza do resto da imagem. Magicamente suspensa pelos livros, ela lança um deles a Mr. Morris Lessmore. A esperança resurge nesse livro e naquilo que ele representa, bem como na sua presença junto dele, na sua presença na narrativa. De forma diferenciada daquilo que se encontra sobre a terra, ela transporta-se nas cores, nas formas, nas intenções, nas emoções e nas soluções que nos outorga. Percebemos a sua importância através do uso de um espaço e de um tempo, de um som e de um colorido que transforma a cena. De um conjunto de cinzentos vemos aparecer todas as cores trazidas pelos livros que, voadores, a suspendem. Esta transformação dá-se igualmente no sonoro. Os livros, quais balões de ar quente a transportar vida, são livros voadores. A música, qual balão de ar quente, torna-se mais rápida e viva, colorida e dinâmica, transformada pelas cores instrumentais, mais também pelas cores discursivas que nos propõe.

O livro ofertado para além de voador, está vivo. As suas páginas viram e animam uma ilustração de Humpty Dumpty que interage vivamente com Mr. Morris Lessmore. Revelando-se um seu interlocutor, conduz as suas ações. Numa primeira fase, o livro pede a Lesmore que o acompanhe, efetivando-se o início de toda a narrativa vivencial da personagem após a tempestade. O livro leva-o a uma casa, uma biblioteca, onde se encontram, e vivem, outros livros que, à semelhança deste primeiro, tem a característica de estarem vivos. Mr. Morris Lessmore não encontra seres humanos nessa casa, unicamente livros que se comportam, vivem, agem e sentem, como se de humanos se tratassem. Mas não são humanos que os criam, não são humanos que se dizem através das suas páginas?

Nas paredes dessa casa não existem somente estantes e livros, existem diversas fotografias de pessoas e, de entre elas, uma fotografia da senhora que lhe entregou, deixando cair do céu, o “seu” livro. Os livros desta casa, personagens vivos, e detentores, à semelhança dos humanos, de diferentes personalidades, interagem vivamente com Lessmore. Mais novos ou mais antigos, à semelhança dos humanos, possuem atividades, personalidades e reações consentâneas com as suas personalidades, as suas substâncias, as suas idades. Uns de poemas, outros de prosa, outros científicos, outros técnicos, outros de medicina, outros de música e arte, conduzem as suas ações dentro das suas possibilidades e propósitos, alterando formas de ser e de pensar, transformando a vivência e a ação de Lessmore. Os livros são a partir de agora os seus amigos, a sua família, estando Mr. Morris Lessmore responsável pela sua permanência na casa.

Mr. Morris Lessmore torna-se então habitante desta biblioteca que está viva. Ele trata e cuida dos livros, e, quando necessário, realiza mesmo intervenções de fundo9. Neste seu trabalho de bibliotecário, e senhor da casa, distribui livros por aqueles que a visitam. Quando se aproximam as pessoas, velhas ou novas, homens ou mulheres, surgem em tons de cinzento, prenunciando ainda as marcas de um sofrimento interior maior, quiçá as marcas de um sofrimento resultante dos efeitos da tempestade, do sofrimento de uma morte. Ao receber um livro das mãos de Lessmore, ao abri-lo e folheá-lo, as pessoas transformam-se, a sua tonalidade também, de cinza volve a colorida. A esperança trazida pela narrativa ilumina as suas existências e as suas almas pois que de vida se fazem os livros, e, de vida e esperança, a sua leitura.

No decorrer de toda a ação, percebemos ainda, que, Mr. Morris Lessmore, depois de provocado pelo seu livro voador, recomeça a escrever o seu livro, o livro da sua vida, compartilhando passagens da sua narrativa com um conjunto de livros voadores, inquilinos da casa, que se reúnem, em torno dele, na colina em frente, debaixo da árvore que escolheu para criar. Anos mais tarde, agora um homem de idade e no fim da vida, finalmente conclui o seu livro. Satisfeito com o seu trabalho, bem como com a vida que, entretanto, teve e dedicou à casa e aos livros, fecha o seu livro dirigindo-se para a porta da frente da casa. Os livros passam por ele e o rodeiam. Rodopiando em volta, erguem-no levando-o para fora do edifício, para longe. Ao partir, o livro que redigiu, que antes era um livro comum, torna-se também ele um livro voador. Como todos os outros livros da biblioteca, procura e encontra o seu lugar na estante. No final da narrativa, vimos aproximar-se do edifício uma jovem menina que se senta nos degraus da escada que fronteia o edifício. Iniciando a leitura de um livro, percebemos que é aquele redigido por Mr. Morris Lessmore. No final do filme, à semelhança de outros retratos, a fotografia de Mr. Morris Lessmore surge numa das paredes da biblioteca. Percebemos que a viagem de Lessmore, é uma viagem em espírito e que a sua vida na terra, da forma como até então se fazia, se concluiu. A vida de Mr. Lessmore tem agora a possibilidade de continuar na ação que a sua obra pode ter sobre todos aqueles que lerem e interagirem com o seu livro. Assim, a vida continua e, os livros voadores, representando a vida de todos nós, encontram-se na biblioteca, uma biblioteca de narrativas vivas, aquelas decorrentes das diferentes existências, concorrendo para a formação de todos nós, e do nosso mundo, em particular.

2.2 A narrativa musical de “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”

A história narrada em “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore” encontra-se, no nosso entender, magnificamente ilustrada, do ponto de vista sonoro, pelo compositor. Sabemos que ela se propõe não só intertextual, mas também, de natureza colaborativa, pois todo o processo de criação se faz no diálogo constante entre os autores. Neste sentido, podemos afirmar que o processo criativo que William Joyce, Brandon Oldenburg e John Hunter encetam na produção e realização deste filme é um processo colaborativo e dialógico, onde os criadores conversam em um procedimento de construção conjunta de obra. Neste processo, o jogo dialógico entre sujeitos envolve circunscrição, ampliação, dispersão e estabilização de sentidos, promovendo a interação e o diálogo entre criadores (Goés 1997). Isso significa que a confrontação e o surgimento de ideias respeitantes à construção e definição do produto artístico final, bem como o conjunto de sugestões e críticas que ao longo de todo o processo de criação se fazem, não só se tornam parte de um modus operandi próprio, como são os instigadores de um desenvolvimento material, discursivo e individual que se complementa não só na individualidade das partes, como na confrontação e determinação do todo. Isto permite que o processo colaborativo se torne uma relação criativa apoiada em múltiplas interferências, uma relação em que os criadores/colaboradores se interpenetram para conceção de um espaço de arte conjunto e plural.

No entender de Alan Taylor o processo de colaboração, mormente aquele que se pode evidenciar entre compositor e intérprete, é um processo em que o compositor cria sozinho, um processo em que o autor não tem que interagir com os conjuntos de influências e ideias de outro. Contudo, no nosso entender, este processo é sempre influenciado por circunstâncias outras. Mesmo que se afirme que um autor só responde ao seu próprio conhecimento, experiências e meios social e cultural em que se insere, percebemos que num processo colaborativo parte das decisões são delegadas e/ou debatidas por todos, ou por uma parte dos seus criadores (Taylor 2017).

Para Taylor existem três vias de procedimento que podem ocorrer aquando de um processo colaborativo: 1. O trabalho pode ser limitado pela necessidade de encontrar áreas de sobreposição ou concordância entre as diferenças de conhecimento e influências. Este facto pode levar a um processo de negociação de forma a estabelecer as áreas em comum, assim como a eliminação de ideias ou tipologias de abordagem que não sejam aceites por todos; 2. O processo colaborativo, e a sua discussão conjunta, pode levar ao surgimento de ideias que nenhum dos autores teria desenvolvido se se encontrasse sozinho; 3. A autoria da proposta de obra será, até certo ponto, partilhada por todos os agentes da criação (Taylor 2017)10.

Em outro, e segundo Hayden e Windsor, outro ponto de grande relevância no processo colaborativo é aquele que concerne a tomada de decisões. Estas inferem diretamente no resultado da obra de arte, definindo a relação de colaboração, assim como o papel que cada um dos intervenientes desempenha. Os autores definem três relações distintas: 1. Diretiva: na qual existe uma hierarquia; 2. Interativa: na qual existe uma negociação entre os intervenientes; 3. Colaborativa: na qual o desenvolvimento do discurso musical surge depois de um processo coletivo de tomada de decisões sobre o que fazer e dizer obra (Hayden & Windsor 2007).

No caso de “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore” sabemos que o processo colaborativo inicia na exigência do uso de um material caracterizador e definidor da personagem principal. Sabemos igualmente que o diálogo entre realizadores e compositor se revela fundamental na aceitação e capacitação discursiva de todos os estratos narrativos. Na cooperação que se efetiva existe entreajuda na execução de tarefas, embora a sua finalidade não seja, geralmente, fruto de negociação conjunta do grupo, pois podemos pressentir o existir relações desiguais e hierárquicas entre os seus membros. No processo de colaboração, os membros de um grupo se apoiam, visando atingir objetivos comuns negociados pelo coletivo, estabelecendo relações que tendem à não-hierarquização, liderança compartilhada, confiança mútua e coresponsabilidade pela condução das ações (Damiani 2008). Como conciliar o antagonismo de fomentar o impulso criativo dos indivíduos dentro do grupo, e ao mesmo tempo preservar a permeabilidade das ideias? Como promover, aceitar e utilizar o empréstimo musical sugerido pelos realizadores?

No caso em análise, não é possível demarcar os limites estritos dessa interferência embora saibamos que, e no caso de “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, as interferências se deram mais no sentido dos realizadores para o compositor, do que o contrário. O processo de construção e definição do discurso das imagens estava quase fechado quando contactaram o compositor. Neste sentido, somos do parecer que a maneira como essa interferência se dá vai depender do grau de amadurecimento do produto, do grupo, e da confiança entre os envolvidos no processo de criação. No caso de “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, o material produzido pelo compositor foi testado e aprovado pelos realizadores, processo esse que não se manifestou constrangedor para John Hunter. Neste caso, e fruto de uma afinidade declarada, uma fase, um processo que se exterioriza, a maior parte das vezes, um fator determinador e potenciador de grande tensão, mostrou-se uma fase de estreita colaboração, influenciação e respeito mútuos. Para superar e transitar com mais desenvoltura nesse momento fundamental do processo criativo foi necessário preservar as funções de cada uma das partes integrantes do processo. De um lado existe total liberdade de criação, mas de outro, é vedado a um criador assumir as funções do outro. Neste sentido, a responsabilidade de cada um alcança não só a sua área específica de criação, mas também a área específica de criação e determinação do outro. Sabemos que o processo de interferência é algo bastante delicado requerendo um certo método, não só para não ferir suscetibilidades, mas, principalmente, para que essa interferência se torne ferramenta eficiente e construtora na determinação e criação dos materiais. No caso da curta-metragem de animação, “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, sabemos que o processo se deu de forma simples e eficaz, produzindo um resultado que satisfez todas as partes.

3 O sonoro e o musical de “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”

No que concerne a produção de música para filme, e no campo das teorias gerais, não podemos deixar de referir, no contexto deste trabalho, Siegfried Kracauer, o primeiro a apresentar uma proposta de classificação das funções da música no cinema (Kracauer 1997). Para ele a música divide-se entre música de acompanhamento, música real, e música como núcleo do filme. Kracauer designa as funções da música por acompanhar, reafirmar, sublinhar, ilustrar ou duplicar a imagem (Kracauer 1997). Maurice Jaubert, e em muitos aspetos de forma diversa, realça alguns aspetos que para ele devem estar presentes na determinação e construção de uma música para cinema. Para ele: a) a música não deve preencher vazios; b) a música não deve comentar a ação; c) a música não deve ocorrer ao mesmo tempo que as vozes ou os sons diegéticos; d) revela-se despropositado considerar a música dramática e expressiva na sua essência expressiva; e) a música não deve conter elementos subjetivos, deve ser tão realista quanto a imagem e dar-nos evidência física do seu ritmo sem se limitar a uma tradução de conteúdos (Chion 1990). Este autor entende ainda que a música deve salientar o ritmo da imagem, sem se tornar uma tradução servil do seu conteúdo (seja ele emocional, dramático ou poético). Simultaneamente, e uma vez libertada dos seus compromissos académicos, a música revelará, através do filme, um aspeto de si mesma até então incogitável (Chion 1990). No nosso entender são princípios em uso por John Hunter em “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”.

Neste sentido procederemos agora a uma análise da obra proposta e em particular da componente sonora da mesma de forma a evidenciar não só as características manifestas, mas, e sobretudo, os elementos preponderantes na construção e definição de obra musical.

Forma. Segundo o compositor, “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore” é uma forma Suite (Hunter s.d.). A Suite é constituída pela sucessão de um conjunto de danças de caráter contrastante, não só a nível melódico e rítmico, como métrico, temporal e textural. As peças, de reduzidas dimensões, alternando formas lentas e rápidas, métricas binárias e ternárias, encadeiam-se de forma a constituir uma obra maior, sendo que se encontram todas numa mesma tonalidade. A proposta sonora construída para a curta-metragem “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore” resulta numa obra com uma duração de 15’ e 07’’, onde percebemos o encadeamento e sucessão de elementos e fragmentos musicais contrastantes, contemplando as características enunciadas, sendo que esta característica se evidencia como própria do género musical em apreço (Hunter s.d.). Em outro verificamos uma alternância de ritmos e métricas de forma a elucidar os conteúdos imagéticos propostos pelo discurso imagem, facto que, conjuntamente com a diversidade e sequência de propostas timbricas manifesta, mais uma vez, as características da forma Suite. Algumas formas Suite são construídas recorrendo ao mesmo material temático em todas as peças que a compõem. Mais uma vez esta característica é evidenciada em “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”. John Hunter constrói toda a sua narrativa a partir da releitura, citação e variação continuada do tema da canção “Pop Goes The Weasel”. Este facto surge do pedido efetivado pelos realizadores no sentido de haver uma caracterização sonora e musical da personagem principal, Mr. Moris Lessmore.

Leitmotiv, intertextualidade e empréstimo musical. A caracterização por um elemento em particular, da personagem principal de “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, evidencia o uso daquilo que se designa por Leitmotiv e, também, pela intertextualidade. O Leitmotiv surge como um elemento não só caracterizador de um personagem, mas ainda como elemento ou tema musical condutor e definidor de todo um discurso musical. A partir do material temático e sonoro da canção “Pop Goes The Weasel”, John Hunter consegue fazer transparecer, por toda a narrativa sonora da curta-metragem em análise, os elementos deste tema musical, presentes através de um procedimento em particular que é a intertextualidade (no caso particular, intermusicalidade).

Alvo de constantes variações, bem como construções e desconstruções materiais e motivicas, o tema define não só o personagem, como todos os elementos e agentes da narrativa. Segundo o compositor, o tema surge sempre variado e transformado. Essa variação e transformação temática faz-se, e como já referido, a nível melódico e harmónico, mas também a nível rítmico, métrico e textural. Este facto interage com a forma de obra proposta pelo compositor – a Suite. A nível timbrico, a paleta sonora, conseguida pela manipulação e combinatória dos diferentes instrumentos musicais, permite a redefinição constante do objeto sonoro e, consequentemente, a sua diferenciação. O processo de citação, surge sempre diferenciado, permitindo a determinação de diferentes texturas sonoras e musicais, mas também afetivas e emocionais. A este facto não será alheia a Teoria dos Afetos, teoria em uso no período barroco e da qual nos podemos socorrer ainda hoje para realçar determinados afetos e emoções em música.

Teoria dos Afetos. A Teoria dos Afetos, teoria em uso no período barroco e da qual nos podemos socorrer ainda hoje para evidenciar determinados afetos e emoções em música, surge como ferramenta na ilustração e expressão das diferentes emoções contidas numa narrativa, como a tristeza, a alegria, o ódio, o amor, o medo, a excitação e a esperança, e na música em particular. Esta teoria, desenvolvida já no século XVII, mostra que os artistas, os compositores, os pensadores e os diferentes cientistas à época, já tinham consciência da afetação das emoções a diferentes estados de espírito e de alma, mas também as consequências diretas e indiretas produzidas a nível físico e fisiológico por essas mesmas emoções. De acordo com Réne Descartes (1996), esses estados físicos, ao serem ativados através dos sentidos, produziam obrigatoriamente uma determinada emoção11. Imitando a emoção através de um conjunto de gestos musicais, determinados por diferentes estruturas a nível melódico, rítmico, harmónico, métrico e textural, o compositor intentava causar no ouvinte essa mesma emoção.

De notar, que estas teorias vinham reforçadas pelas descobertas científicas da época, pois já nesta altura se acreditava poder produzir alterações físicas e comportamentais através do som, contribuindo, assim, para o equilíbrio e o bem-estar do ser humano. Os compositores não pretendiam expressar os seus sentimentos de forma individual, mas sim, de uma forma geral. Pensamos poder afirmar que o mesmo se expressa em “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”. Neste caso, uma ação sobre os sentidos causa uma emoção que se vê traduzida em música e, através dessa ação a nível sonoro, agir sobre as componentes física e psicológica do espectador da sua obra.

4 Conclusão

Sendo nossa intenção perceber de que forma a proposta sonora de John Hunter consente a possibilidade de meditar sobre a forma como o processo compositivo e colaborativo pode ser fulcral para a determinação dos conteúdos expressivos do objeto artístico, enfatizámos toda esta nossa ação nesse sentido. Este facto é por nós assumido pois, no nosso entender, o sonoro concretiza-se, e neste caso, através do discurso das imagens, estabilizando numa narrativa redefinida pelo som. Os assuntos nela propostas, necessitam, no nosso entender, de um processo de abstração para que um novo autor se concretize obra, e para que o espectador aí se espelhe também.

No conjunto das possibilidades, mas também dos constrangimentos próprios ao ato criativo, prevemos como essencial a conexão do sonoro com as imagens, a narrativa e a matéria por elas representada, bem como os elementos da canção, “Pop Goes The Weasel”, um conteúdo que, como vimos, percorre e enforma toda a obra. Neste sentido, o conjunto das imagens fornecidas pelo realizador, pelo compositor, e pela memória contruída, constituem-se matéria e forma a enformar pela nova realidade musical. De natureza intertextual, se mostra nos processos e nas técnicas de releitura, citação, variação e colagem. As possibilidades e os constrangimentos a este facto são muitos e potenciadores do ato criativo. A ligação que o espectador estabelece com o som das imagens, bem como com o discurso por elas criado, determina todo o processo de perceção. Este processo tem-no igualmente o compositor no momento de determinação das suas escolhas criativas e determinativas do seu objeto de arte, nomeadamente quando assume a forma Suite e um dizer consentâneo com o expresso pela Teoria dos Afetos.

Assim sendo, e depois da análise do objeto fílmico, percebemos que os conteúdos expressos pela narrativa e pela imagem se modificam nos conteúdos projetados pela narrativa sonora. Acresce o facto de ser um filme sem diálogos falados, sendo que o diálogo com o espectador se faz essencialmente através dos discursos som e imagem. Fruidor e espectador se manifestam na obra, e, pela obra, informam e enformam os conteúdos imagético, técnicos e expressivos da mesma. Neste dizer, e mais uma vez, relevamos a importância do som para a edificação da narrativa. Da simultaneidade, ou não, das intenções criativas ressalta uma obra que se faz maior em cada uma das propostas. Nós outros, espectadores de arte, buscando o inaudito, nunca saímos defraudados. Em “The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore”, os autores desenham um novo olhar sobre a vida, permitindo uma leitura diferenciada do que pode ser a destruição e o renascimento, bem como o amor pela leitura e pelos livros, definindo novos comportamentos através do objeto de arte.

Notas finais

1O filme foi lançado nos Estados Unidos da América a 10 de fevereiro de 2012, tendo recebido 14 prémios, incluindo o Prémio do Público no Festival de Austin, o “Best Animated Short” no Cinequest Film Festival e, o Óscar de Melhor Curta-Metragem no 84º Annual Academy Awards, em Hollywood.

2Este facto é inspirado, segundo o autor, em dois elementos base: a cena da tempestade em “Keaton’s Steamboat Bill Jr.” e no tornado do filme “O Feiticeiro de Oz”. Também tem como fonte de inspiração, a destruição massiva provocada pelo furacão Katrina, tempestade que, na vida real, devastou a cidade Norte Americana de Nova Orleans, decorria o ano de 2005. Como fontes de inspiração surge ainda Buster Keaton e o seu amor pelos livros.

3Como em “O Feiticeiro de Oz”, a curta-metragem utiliza o contraste de cores e o preto-e-branco (tonalidades cinzas), como ferramenta e dispositivo narrativos. Neste caso, o preto e branco, bem como os tons de cinzas, representam a tristeza e o desespero causados pela devastação, as outras cores, a alegria e a esperança, trazidas pelo renascimento e a mudança.

4Este facto sugere um conhecimento das relações existentes entre música e imagem, mas também entre música e afetos. Lembremos que a forma da obra, a suite, é uma forma de um período da história da música onde a relação entre a música e as emoções deu origem à teoria dos afetos.

5No entanto, a maneira como o compositor utiliza o procedimento deve ser suficientemente individual de forma a que seja identificável a sua proveniência, denunciando ainda, a aplicação de uma determinada forma de intertextualidade como já referido (Burkholder 1994).

6Queremos com isto dizer, o uso das técnicas de releitura, citação e colagem próprias ao empretimo musical e à intertextualidade e que, no caso do uso de obras musicais, se define como intermusicalidade. O compositor encontra-se “entre músicas”, à semelhança de outros autores quando se encontram, “entre textos”.

7Leitmotiv é um motivo condutor, um tema musical que, numa obra, surge como uma referência específica a uma personagem, um objeto, um sentimento, uma ideia. Na música erudita ocidental é empregue essencialmente na Ópera e no Poema Sinfónico. Richard Wagner utiliza o Leitmotiv de forma sistemática na sua obra tanto instrumental como operática.

8Sabemos que uma das fontes de inspiração do filme foi o furação Katrina, este fenómeno, naquilo que ele possui de energia destrutiva, mas simultaneamente regeneradora, inicia toda a narrativa.

9Como aquela proposta na intervenção cirúrgica ao grande livro velho.

10Taylor analisou ainda a forma como duas ou mais pessoas podem colaborar, sendo a primeira o processo de invenção artística ou imaginativa. A contribuição imaginativa realizada pelos diferentes participantes pode estar confinada a partes separadas de uma obra ou, em alternativa, podem todos contribuir para o seu todo. No caso em análise pensamos ser este o procedimento.

11No seu tratado “As Paixões da Alma” (1645-46), René Descartes analisa e cataloga as várias emoções elaborando uma teoria acerca da forma como são produzidas. Segundo ele, qualquer movimento que estimule os sentidos produz obrigatoriamente uma emoção que se transmite diretamente à alma. Charles Le Brun (1619-1690), autor que domina a escultura e a pintura francesas no século XVII, professor na Academia Real de Escultura e Pintura, produz um conjunto de desenhos que ilustram as diferentes emoções: surpresa, ódio, medo, esperança, tristeza, alegria. Esta informação surge em 1698 como “Método para aprender a desenhar as paixões”.

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