AVANCA | CINEMA

Obscure Radiation: Sound energy flows at the threshold of the sound experience

Radiação Obscura: Fluxos energéticos sonificados no limiar da experiência sonora

Hugo Paquete

CIAC: Centro de Investigação em Artes e Comunicação e ID+ Instituto de Investigação em Design e Cultura, Portugal
Universidade Aberta, Portugal

Adérito Fernandes-Marcos

CIAC, INESC-TEC e LE@D, Portugal
Universidade Aberta, Portugal

Paulo Bernardino Bastos

ID+ Instituto de Investigação em Design e Cultura. Grupo: Praxis and Poiesis: from arts practice towards art theory, Portugal
Universidade de Aveiro, Portugal

Abstract

This essay analyze the impact of the sonification processes in the sound arts. This is achieved exploring the definition of their production methodologies, philosophical implications and conceptual significance taking as examples my artistic experiments with sonification of light and electromagnetic fields explored in my projects that are presented in this analyses. The sonification as an artistic practice consist of generating art works based in the data-flows. Originated a sound event outside the physic of sound as non-vibration force. That is associated in my argument as data-event-sound connected with a new ontology outside the forces that animate the understanding of sound as vibration. Opening the understanding of the work of art as a system of interdependent relations in digital-art. Generating new ways of understanding sound as mutation in which digital, culture and spiritual establish interconnections between the computer as a digital domain in a landscape of code, promoting complex regimes of laminar-perception.

Keywords: Sound art, Sonification, Digital Art, Sound Event, Post-Digital.

Fora do visual centrismo

Refletir sobre a experiência estética pode ser semelhante a correr num labirinto de abismos onde nos cruzamos com múltiplos objetos, mais ou menos materiais que se acumulam no mundo, que descrevem o mundo e são resultantes de uma necessidade de produção e exteriorização de ideias, materiais ou imateriais num grande aterro analógico e digital. Como este texto repleto de palavras, fonemas e grafismos que vos apresento, que é uma torrente ou fluxo de informação compilada, com um conjunto de regras para obedecer à comunicação e fortalecer o entendimento, construindo um sistema semelhante a uma rede de significados. Espero conseguir que esta torrente de “data” tenha a capacidade de sugestionar outros pensamentos que, entre as vírgulas e os pontos, as pausas dos seus micro silêncios, possam sugestionar novas ideias e manifestar objetos espectrais entre as vossas sinapses especializadas em estética e nas estruturas e sistemas da sua análise ou produção. Assim sendo, este artigo inicia-se com o objetivo de elaborar uma data visualização que se vai formando no decorrer da leitura, na cognição do leitor. O que escutamos, observamos e sentimos é uma “form” (Langer, 1957:30), que designa relações que se estabelecem na obra e que, por vezes, são abstratas e não lógicas. Ou, dito de uma outra maneira, não lidam unicamente com a forma concreta, definem também condições abstratas da obra artística e dos seus significados. A forma lógica não é visível, é conceptual, “its abstract” (ibid) e quando vemos um trabalho de arte, ele não tem uma forma expressiva, ele é “being one” (ibid). Este processo deve-se à particularidade de vermos “appearance of things without being awer of them as particular appearances” (Langer, 1957:31). Nesta argumentação, nunca passamos da arte para outra coisa, estamos sempre num plano do sentir próprio da obra, seja qual for o processo ou metodologia inerente às suas condições materiais. Porque a experiência artística e estética é algo que suplanta a condição da materialidade e das substâncias da obra, é qualquer coisa que dela emerge na nossa consciência, mas que não está associada à dimensão material da mesma ou da sua eventologia. Os sentimentos são dinâmicos e a imagem, o som e as formas fundem-se, tornam-se “symbolic form, symbolic function, and symbolic import are all telescoped into one experience, a perception of beauty and an intuition of significance” (Langer, 1957:34), estando a compreensão do objeto artístico dependente de uma “conscious logical abstraction” (ibid). A ilusão presente nas artes remete para qualquer coisa que não está presente, é a “stuff” (ibid) das artes, uma coisa semi-abstrata, única, que pode estar para lá do fluxo de informação, do sistema ou dos meios pelos quais a obra se desenvolve e é construída. Autodenominar a arte-imagem ilusória é simplesmente dizer que não é material. O espaço pictórico ou sonoro é um espaço simbólico com símbolos que são “vital feelings” (Langer, 1957:3) e que ganham significados na nossa consciência, como experiências às quais atribuímos, ou não, afetividade e valor. Por esse motivo, definir se na sonificação é mais importante uma abordagem de primeira ordem ou de segunda ordem somente cumpre necessidades que servem processos explicativos técnicos do funcionamento da obra, mas não são essenciais para o que a obra pode significar como experiência estética e emocional, que é onde adquire o seu valor como arte. Mesmo quando mencionamos que a música não tem um “virtual space” (ibid) como a pintura, ou a “data” utilizada nos processos de sonificação, existe, porém, o conceito de “stuff” (Langer, 1957:3), proposto por Langer, que efetua essa ligação entre todas as artes e suas metodologias. A stuff é o material irreal através do qual as formas são feitas, estando além das condições materiais, logo são uma ilusão, existindo num espaço virtual e tempo subjetivo da cognição. O fenómeno musical, para Langer, constrói também ilusões, “appearance” (Langer, 1957:36), que são geradas pelo sentido do “movement” (ibid) criado tanto pelas vibrações como pelas oscilações físicas do som. Mas, do mesmo modo que a ilusão surge no espaço pictórico, também podemos denominar estes movimentos do som na música como ilusórios. Por isso, a música apresenta uma ilusão da passagem do tempo, mais precisamente de um “felt time” (Langer, 1957:37). Mas esta noção de tempo na música não é o mesmo tempo dos relógios, mas sim um tempo subjetivo, “utterly unlike metrical time” (ibid), ao qual conectamos sentimentos de tensão, emoção e estados mentais. Este processo de “felt time” (ibid) é o mesmo que acontece nos processos gerados pela sonificação perante o sistema construído para gerar resultados. Se excluirmos todas essas dinâmicas particulares dos mecanismos, códigos e processos, o que nos resta é uma ideia de fluxo de sensações e símbolos sonoros ou visuais, com os quais temos de lidar na construção de significados. Não importa qual a sua origem ou conversão, mas sim os seus resultados e efeitos sobre nós e o que retiramos dessa experiência, mediada numa rede de complexas tecnologias, sistemas e processos. É simplesmente enquadrado e negociado pelo gosto estético e cultural do observador. O que me deixa sempre com a opinião de que, quanto maior é o valor estético e experiencial de uma obra que envolve tecnologia, menos são sentidos os meios, tecnologias e processos nela utilizados. Porque a experiencial estética vai além das condições materiais ou contextuais da obra, ela é uma expressão, coisa abstrata que significa e lida com elementos mais profundos do ser e da sua aproximação ao belo ou ao sublime. Para Langer, a complexidade do ser humano e dos seus estados emocionais, tensões e forças vitais resultam de um tecido complexo de interações obscuras, que ganham significado. Neste tempo presente na música, nenhum objeto se desloca e tudo é um processo de intangibilidades mediadas pela cognição do evento sonoro, musical ou do data-som. Por mais complexa e multidisciplinar que a obra seja, utilizando várias disciplinas da ciência e da arte, e posicionando-se em diferentes práticas, entre as artes plásticas, ou a música, podemos mencionar que todas estas práticas artísticas têm uma ligação em comum que é a “immateriality” (Paul, 2008:70), seja nas artes sonoras que contextualizo em práticas artísticas que encontram referentes na New media art1 e na Arte e Tecnologia2. Esta contextualização permite uma expansão dos campos onde o evento sonoro é trabalhado na atualidade e a constatação de que muitos trabalhos de Artes, que envolvem multidisciplinaridade estilística e formal, integram o elemento sonoro sem estarem especificamente a referir-se a aspetos da música. A sonificação será mais uma metodologia disponível nos processos e resultados.

Delimitação do conceito de atuação nas artes sonoras

Por vezes, o elemento sonoro simplesmente imerge pelas possibilidades tecnológicas da combinação de diferentes medias ou pela democratização das ferramentas tecnológicas. Alan Licht propôs, em 2007, um entendimento sobre as artes sonoras baseado nos seguintes princípios:

“1. An installed sound environment that is defined by the space (and/or acoustic space) rather than time and can be exhibited as a visual work would be.
2. A visual artwork that has a sound-producing function, such as sound sculpture.
3. Sound by visual artists that serves as an extension of the artist`s particular aesthetic, generally expressed in other media.” (Licht, 2007:17).

Ou como Christiane Paul, em 2008, propõe uma maneira mais diversificada de técnicas onde o som é utilizado e serve para expandirmos o conceito e o campo de atuação das artes sonoras. Nestes dois casos específicos, as artes sonoras cruzam disciplinas e estéticas com diferentes tradições, mantendo uma coisa em comum que efetua a ligação entre elas - a utilização da tecnologia para tratar os eventos-sonoros numa abordagem extra musical:

physical installation with sound and internet component and defies a purely formal classification. (…) Ultimately, every object – even the virtual one – is about its own immateriality, which inform the way in which it creates meaning. (…) digital artworks (...) installation; film, video, and animation; internet art and software art; and virtual reality and music environments. (Paul, 2008;70)

Digamos que as práticas que aqui apresento estão entre várias categorias desenvolvendo uma forma de arte híbrida, que tem conexões com a cibernética pós-McLuhan, “interconnectivity of the post-McLuhan cybernetic zeitgeist rather then a cross-disciplinary artistic vision” (Licht, 2007:211). Dito isto, são também referenciadas como práticas “Neo-modernists”3, por Christoph Cox, pela sua atenção às qualidades do medium pelo qual se expressam e técnicas que utilizam, centrando a produção nos discursos e possibilidades do medium e suas características. Alguns dos conceitos apresentados são os vetores das ideias apresentadas nesta reflexão.

Data-evento-sonoro nas artes sonoras

O evento-sonoro na sonificação não encontra qualquer representação inicial numa espectrografia de frequências, numa onda, mas sim numa sequência de informações, por exemplo de temperatura em centígrados, radiação, luminância, impedância elétrica, humidade que, por sua vez, são convertidas por processos informáticos - “código” - ou analógicos - “dispositivo”- para configurarem primeiramente sistemas, “símbolos” e, seguidamente, “vibrações”, output, data-sonoro. Neste processo e na construção das suas condições, é sempre uma simulação que tem um objetivo concreto, que parte de uma premissa inicial que pretende retirar de qualquer evento um outro conjunto de manifestações, em associação direta ou indireta. É exteriorizar um evento data-sonoro a partir do conjunto de condições criadas por um processo de simulação sensorial, tecnológica, sendo impossível de dissociar da cultura e das opções formais desenvolvidas. Como também não existe nenhum conceito de pureza ontológica no que diz respeito a estas condições de conversões, visto que elas são sempre simulações e atos de remix, híbridos e integrados em processos dentro de um sistema interdependente e de interpretação. Para já, podemos concluir que o data-som dos processos de sonificação são sempre simulações que ganham existência num conjunto diversificado, complexo e sistémico, proveniente de uma ontologia fabricada, artificial e digital e, desse modo, são inicialmente estéticos, contextuais e culturais, mesmo quando utilizados pela ciência em detrimento do serviço dos seus propósitos ilustrativos. Assim sendo, existe uma tendência na nossa sociedade para o visual-concentrismo, ao excluirmos outros sentidos que também permitem obter conhecimento dos eventos e ocorrências circundantes, como os produzidos pelo som que se encontra sempre num estado de imanência e desaparecimento. É um fantasma, um espectro que nos envolve como a luz e nos escapa, quer seja pelas suas condições materiais ou velocidade de aparecimento, e é acedido e mediado pela memória. A luz é a sua velocidade que recorta os objetos e suas delimitações e se encontra pulsante, ondulante, exposta à sua velocidade que constantemente renova e estabelece a realidade das formas e dos seus contornos, também num estado de imanência e desaparecimento. A perceção que obtemos destas condições é acedida pelos conhecimentos científicos e especulações filosóficas que efetuámos. É, portanto, o liminar e os abismos da apreensão do mundo físico e seus fenómenos que estamos a tentar explorar, encontrando estratégias de o fixar, explorar e materializar, enquanto sistema de relações intermediado pela tecnologia.

O inaudível como possibilidade estética

Assim, a sonorização é utilizada como uma forma de gerar experiência estética que se encontra em estado potencial na “data” desse vasto sistema mundo, tendo em consideração um conjunto de desejos que procuramos ver representados enquanto som e para o qual construímos as condições propícias para esse emergir, mesmo nunca deixando de partir do método científico de recolha dos dados. Sem estas particularidades do desejo de ver manifestada a nossa vontade, e os conhecimentos técnicos, não temos a “data” nem a conversão e, por último, o data-som não poderia ser fabricado, já que todas as condições de conversão e tecnologia são necessárias para converter a informação de outros medium que não são sonoros, como a luz num data-som, som sem vibração e de ontologia falsificada. Este tipo de evento-data-sonoro nunca é encontrado de forma autónoma, mas sim fabricado, tendo em conta algo – estéticas - que ele nunca teve nem lhe é inerente, No entanto, a estética esta presente, visto que a estética e a beleza, visto que a beleza ou experiência estética é o único elemento que transcende as condições de produção e só encontra ressonância e vitalidade na consciência de quem atribui valor a este data-evento-sonoro. Como é lógico, depois de fabricado ganha autonomia e pode ser passivo de ser analisado de modo independente dos seus modos de produção, abrindo outras leituras para o plano das significações e interpretações das estéticas que lhe são associadas, provenientes das condições, tecnologias e culturais e elementos que estão integrados no data-som enquanto motivos estéticos. Mas coloco-me do lado de Lencaster quando ele menciona que a sonorização “is more than a rigorous and scientific representation of the world” (Lencaster, 2012:208) e procuro expandir alguns conceitos que me parecem pertinentes para discutirmos o impacto desta prática nas artes sonoras e em outras áreas que trabalham com o evento sonoro, como os que tenho vindo a desenvolver desde 2016. Refiro os projetos Synthony under 20Hz, Phase Shift, apresentados na Áustria, em Linz, onde iniciei esta investigação de tradução da amplitude elétrica da imagem vídeo e suas frequências para som por intermédio de painéis solares e programação modular em softwares, como Plogue Biduel ou Audio Mulch. Este projeto foi apresentado no Atelier Salzamt, Linz e financiado pela CreArt (Network of Cities for Artistic Creation) e European cultural fund. Investigação que deu origem ao projeto Zoe: Actante de 2017, apresentado no Arquipélago Centro de Arte Contemporânea dos Açores, sendo eu artista residente em parceria com o Hospital do Divino Espírito Santo. No seguimento desta investigação, integrei a mesma tecnologia no projeto Cosmos de Chris Ziegler, em 2018. A composição musical para a peça de dança interativa, com música espacializada para 48 canais de áudio, onde integrei o sistema de painéis solares e os conceitos que estou a desenvolver. Esta peça foi apresentada no ZKM | Center for Art and Media Karlsruhe e teve o apoio das seguintes instituições: Arizona State University / School of Arts, Media and Engineering Tempe (USA) Funded by LAFT Baden-Württemberg e.V. with support of the Ministry of Science, Research and the Arts of the State of Baden-Württemberg, Germany. E, por fim, o projeto Obscure Radiation de 2018 apresentado no LAVA: Laboratorio de las Artes de Valladolid com o apoio do projeto CreArt (Network of Cities for Artistic Creation), European cultural fund e também com uma bolsa de criação da Fundação Calouste Gulbenkian. O projeto iniciou-se procurando responder à seguinte questão: Poderia construir um sistema de produção sonora que reagisse às variações elétricas e da luminosidade do espaço, com recurso a vídeo ou outro qualquer dispositivo luminoso ou indutor, capaz de captar o campo eletromagnético circundante? Estes fenómenos e eventos e as suas condições são os valores a serem utilizados num sistema generativo capaz de produzir variações sonoras musicais apelativos. E também serve para controlar áudio e vídeo em temporal, partindo da ideia de sistema de interdependências. Na procura destas respostas, inicialmente desenvolvi uma série de experiências, recorrendo somente a meios analógicos, amplificando o som gerado pela variação luminosa convertida em amplitudes elétricas por intermédio dos painéis solares, ligados a amplificadores e pedais de guitarra. Apresento aqui uma prova de conceito em vídeo, desenvolvida em 2016, no Atelier Salzamt, Linz, Áustria. Nesta experimentação, a sonorização é abordada de modo direto, sendo unicamente explorada a relação entre frequência da imagem, cor e variação para gerar elementos musicais. Não se procura, deste modo, nenhum tipo de ilustração em que o som complementa a imagem, mas é adicionado posteriormente. O que escutamos é a pura energia da luz amplificada e da sua variação elétrica, viajando no espaço e no tempo. Dito isto, esta experimentação envolvia pensar a imagem inicialmente para gerar um tipo de evento sonoro, que é sempre relacionada com variação de luminosidade, cor e frequência provenientes da edição. Posteriormente, foram elaboradas experiências mais complexas, o que implicou uma experimentação que envolvia compreender as frequências da cor, intensidades luminosas e vibração da luz, tentando analisar o tipo de som resultante e as suas possibilidades musicais. Apresento o resultado dessa experimentação, utilizando processos de sonificação direta puramente analógicos. Outra obra é Synthony under 20Hz de 2016, desenvolvida no mesmo contexto, mas que envolvia já um processo de sonificação com recurso a computação. A “data” das variações elétricas luminosas captadas por painéis solares e convertida para midi que, por sua vez, era convertida em ordens que acionavam um conjunto de elementos sonoros e musicais generativos programados no Plogue Bidule, mas que envolvia um determinado espetro de casualidade no modo como a data estava relacionada com os diferentes instrumentos virtuais e controlada com base nas intercidades de voltagem captada pelos painéis solares. Neste artefacto, conseguimos escutar o som da eletricidade gerado pelas variações sonoras e o modo como outros elementos sonoros emergem deste sistema, combinando ainda uma manipulação destes valores em tempo real por parte do performer. Foi ainda utilizado um processo de vídeo mapping para poder ter mais variações entre espaços iluminados e elementos a serem lançados e gerados em termos sonoros. Assim sendo é empregue o conceito de sistema. Nesta obra, são combinados processos de sonificação direta e indireta, além do facto humano envolvido na performance que reage e interfere neste sistema. Esta obra Phase Shift de 2016 apresentada e desenvolvida no Atelier Salzamt, Linz: Áustria. Gostaria de reforçar que não é o som que altera qualquer parâmetro da imagem. O que acontece nestas obras é precisamente o contrário. É partindo da imagem-luz e suas variações que o som é gerado em tempo real.

Atuação no limite

A obra Zoe: Actante, 2017 é desenvolvida em torno de conceitos, como limite, interação, imprevisibilidade, cultura e atuante, na extrapolação dos imaginários científicos e técnicos retirados do contexto da residência artística. Interpretados numa abordagem performativa, em que sons, imagens, gestos e objetos, recolhidos no hospital ou recriados, emergem num sistema de relações generativas, potencializadas pela tecnologia computacional, que nos remetem para o espaço técnico do diagnóstico como meio de intermediação dos campos de representação e de potencial estético. A contingência da obra é construída com recurso a fenómenos visuais e sonoros intangíveis, como gravações dos campos eletromagnéticos dos equipamentos hospitalares, variações de luminosidade do edifício convertidas para som em tempo real, com recurso a painéis solares no contexto da performance e imagem proveniente da tecnologia médica hipertónica e hipersónica. Desvendam-se eventos, sonoros, luminosos e atuantes, como vírus e bactérias que se encontram num estado de imanência e desaparecimento, que só podem ser revelados pela mediação das tecnologias, gerando transformações, efeitos e reações, que irrompem pela nossa consciência e que se contextualizam também como elementos implicados na cultura. Constrói-se um espaço de imersão e subjetividade científica, onde os espetadores como atuantes ativam a obra como pertencentes a um sistema de interdependências. Os eventos sonoros emergem neste sistema como elementos granulares minimais que, num processo alegórico, se vão multiplicando como as bactérias, acompanhados de pequenos music scores, de composição orientada para objetos que remetem para a memória de situações sonoras do hospital. Este material vai sendo interpretado ao vivo, estando em constante hibridação pela aplicação do gesto performativo, tecnologia aplicada e interação do público como atuante, catalisador no interior de um sistema vivo e imprevisível. A soma de todas estas interações é o diagnóstico experimental.

O ruído como fluxo

Nas sonorizações e nos seus processos, todas as preferências encaminham o resultado, sonoro ou musical, para processo de escolha, baseados no estilo, especialmente no contexto Pós-Cage, em que todos os sons são considerados musicais e utilizados na música, o que permite também uma expansão do modo como o som é utilizado em diferentes estéticas fora da música, como, por exemplo, na arte digital e artes sonoras. Esta utilização do som fora do contexto da música requer mais atenção, visto que as técnicas de sonorização também não são especialmente contextualizadas na disciplina da música, porque em alguns casos implicam outros saberes técnicos, como a programação de algoritmos, linguagens informáticas, sensores, hardware, composição, música, manipulação de sinal áudio, amplificação, engenharia, design, que contribuem para a expansão dos eventos sonoros. Nesta parafernália de elementos, existe um elemento que conecta todas estas relações, que é essencialmente a tecnologia que, como atuante, estabelece conexões, vitalidade e efeitos nas relações que se podem estabelecer entre disciplinas e modelos de produção práticos e conceptuais. Como considero todos os processos gerados pelas sonificações fabricados, contextualizo este facto no conceito de simulação ou “procedual” (Lencaster, 2012:210), que define que a sonificação permite um modo processual, por intermédio do potencial computacional e do digital, de gerar música ou data-som, com recurso a algoritmos e outras estratégias que podem ser utilizadas para dar vitalidade à data e manifestá-la em evento sonoro. Lencaster menciona que “It should be that arranging sound in a music way is part of a new definition of functional sonification” (ibid). Esta ideia de arranjo implica opções de composição e manipulação da informação para configurar o data-som. Existem disponíveis várias ferramentas computacionais para converter qualquer valor em parâmetro de áudio, em resumo, são só valores disponíveis para conversão. Podemos assegurar que o mais complicado e interessante é quando endereçamos estes valores ao estilo, às opções de composição e expressão. Existem, por assim dizer, determinados valores que são construídos com base nas opções formais e que estão carregados de conceções culturais que vão além da “data” que está em análise. Para clarificar, utilizaremos uma reflexão apresentada por Lencaster que divide os processos da sonorização em duas instâncias, que denomina de ordens.

Data-som: Fluxos de números na dispersão computacional

A sonificação é uma técnica que recentemente tem vindo a ganhar expressão no contexto das artes sonoras por influência dos meios computacionais e do ambiente digital, pelos meios, recursos, softwares neles contextualizados, facilidade de manipulação da informação “data” e sua democratização na sociedade da tecnocultura. A tecnocultura “refers to communities and forms of cultural practices that have emerged in response to changing media and information technologies, forms characterized by technological adaptation, avoidance, subversion, ore resistence.” (Lysloff, 1997). Dito isto, construo o contexto social e tecnológico propício para a manipulação da “data” na arte que, neste caso específico, se centra nos fluxos de informação que procuram ser convertidos em som ou endereçados a regras de composição e manipulação sonora ou musical. Contudo, estes eventos-data-sonoros devem ser compreendidos como pertencentes a uma ontologia simulada e fabricada, visto que este tipo de som não provém especificamente dum evento ou fenómeno de vibração. É, sim, um reflexo dos fluxos de informação produzidos por sensores, suas medições e conversões numéricas dentro de um sistema computacional-digital, onde não existe deslocação de ar, materiais que vibram ou outra qualquer realidade propulsante de vida, nem compassos de acidente rítmico nem impacto de onde o som, enquanto ondulação e pressão no ar, possa evidenciar-se. Digamos que este tipo de evento sonoro, gerado pela sonorização, pode ser compreendido como um data-som que, na sua origem, é um silêncio ou mutismo, obtido tanto na ciência como na arte com base no querer do autor, sua capacidade de imaginar as conversões da “data” para “som” com base nos seus valores estéticos, tecnológicos, processuais e formais, como também pelos objetivos do que pretende trazer ao nível da perceção humana auditiva, procurando as condições necessárias para a conversão, que é o meio de “trazer à realidade” o data-som, por processos algorítmicos, simulados e fabricados artificialmente por conversões e transformações. Desse modo, o data-som é um data-evento-sonoro que se encontra dependente das condições computacionais-tecnológicas simuladas que lhe são proporcionadas pelo autor e pela ecologia tecnológica envolvente do artefacto artístico como sistema. A sonificação tem vindo a ser definida como “the use of nonspeech audio to convey information” (Kramer, 1996) e tem vindo a ser descrita como a equivalência sonora da visualização da informação. É, contudo, uma área em desenvolvimento e relativamente nova, que hoje é favorecida pelas tecnologias open source em termos de hardware, Arduino, Roseberry pi, sensores entre outras, como também por software e suas linguagens de programação, Processing, Vvvv. Max/msp entre outras, e o modo como os conhecimentos circulam na web, nas comunidades dentro e fora das academias, o que contribui para uma democratização dos meios científicos, técnicos e dos conhecimentos ao dispor dos artistas e comunidades. Este fator de democratização das tecnologias é observado nos meios técnicos que são utilizados na produção e resultados destas obras. Apesar de a sonorização ser um campo recente na investigação a nível científico, podemos encontrar referências históricas nas experiências com o Geiger counter, em que os níveis da radioatividade são convertidos para sinais sonoros partindo dos níveis de radiação. Também as experiências de 1960 utilizavam o som para “discriminate between earthquakes and underground nuclear detonations” (Supper cit. Volmar, 2013), entre outros projetos científicos ou artísticos. Neste caso específico, centrarei a minha análise em projetos artísticos por mim realizados, que utilizam processos de sonificação. Parece-me interessante referir que a sonorização foi um campo que emergiu em inícios dos anos 1990, inicialmente como uma metodologia ao serviço da comunidade científica, mas que foi ganhando autonomia no campo das artes, como demonstrarei no decorrer desta argumentação. Este início histórico deu-se aquando do encontro “International Conferences on Auditory Display” (Supper, 2012), em que uma comunidade de participantes de vários espetros profissionais tentou discutir o tema e a sua validade como metodologia para diversas práticas e resultados. Presentemente, observamos no contexto das artes sonoras a utilização de sistemas de sonorização em que o som emerge de uma relação não vibratória sobre um meio, mas sim associado a uma torrente de informação “data”, que é convertida por um conjunto de modelos de interpretação, intermediados pela tecnologia, código, dispositivos e eventos sofisticados. Sendo assim, a sonificação permite modelos de produção flexíveis, nos quais o mesmo sistema de eventos “data” pode ser aplicado em contextos e situações diversas, gerando outras possibilidades de interpretação e utilização. No decorrer da minha investigação, efetuei uma outra experiência, utilizando um sistema de sonificação que apliquei ao hiper-instrumento usado na performance ZOE: Actante. Assim, em vez de utilizar painéis solares, optei por integrar microfones de contacto nos hiper-instrumentos que construí para a performance, compostos por duas lâmpadas de raio x e duas estruturas metálicas. Esta documentação serve como prova de conceito para exemplificar a flexibilidade do sistema de sonificação que, neste caso, funciona por contacto, impacto e manipulação. Assim, gera um output sonoro manipulado por um dos processos de sonificação utilizados nos painéis solares. Nesta exploração, procura-se, então, uma relação mais híbrida entre a programação envolvida na sonificação e o ato performativo e interpretativo pelo modo como o objeto reage para dar sonificação e os resultados sonoros musicais. Envolve um processo de improvisação, espera e resposta por parte do intérprete perante os outputs lançados pelo sistema. Esta experiência de sonificação foi construída com base numa ideia de percussão, com o intuito de estabelecer relações rítmicas e modelações sonoras, que seriam geradas de sons provenientes de sintetizadores, caixas de ritmos, entre outros elementos, que estavam ligados à seguinte ordem: amplitude de sinal, impacto, manipulação e conversão para valores MIDI que oscilavam entre 0 e 127, podendo ser controlado o seu campo de atuação numérica e afetando também em valores CC que controlavam parâmetros de modelação em instrumentos virtuais integrados na sonificação desenvolvida. Nesta experimentação, foram integrados no artefacto artístico todas as tecnologias, métodos e aprendizagens desenvolvidos no decorrer da investigação.

Data-evento-sonoro: uma ontologia não vibratória

Compreender estes fatores torna-se fundamental para entender os modos como o som hoje emerge de um conjunto de práticas em que o próprio som, como elemento vibratório, está ausente. No entanto, por um conjunto de processos analíticos, artísticos e tecnológicos assentes na vitalidade da informação e tecnologia, é fabricado artificialmente pelo conjunto de meios tecnológicos que estabelecem as regras, os modelos de conversão-manifestação e as condições-suplicies necessárias para o evento data-sonoro emergir. Estas alterações da natureza do evento sonoro, que tem uma origem na data, mudam a sua ontologia enquanto evento vibrátil e, por conseguinte, mudam também a sua natureza e existência e reconfiguram novos modos de cognição. Porque este som que aflora dos processos de sonorização nada tem de semelhante com o som manifestado numa ordem de natureza primária, que seria o som como o compreendemos, manifestado por impactos, fricção, vibração de corpos num meio sólido, gasoso ou líquido. O data-som gerado pelas sonorizações, pela ordem da sua natureza secundária que lhe atribui uma vitalidade que é o código e o ambiente digital, não encontra referência, nem lugar em nenhum corpo vibrante de onde ele surge, estando sempre conectado com o princípio do digital, que é simulação. Nestas relações, não só a ontologia do data-som levanta outras interpretações sobre a sua materialidade e origem, como também pode moldar a necessidade de repensar outros modos de o teorizar, que serão avançados no decorrer do texto. Contribui, também, para o modo como estas relações estabelecem novos ritmos dinâmicos entre conceitos, disciplinas e práticas sonoras híbridas e, acima de tudo, novas bases filosóficas que suportem a prática da sonificação como proponho.

Sonificação na ciência

Na primeira instância de sonorização a data encontra-se numa relação de um para um, e o método que está envolvido é o científico que, convertendo os valores de forma direta, procura formas de relação direta, ilustrativas, que podem ser relacionadas com qualquer valor no domínio da manipulação sonora ou visual.

Sonificação nas artes sonoras

A segunda ordem centra-se num modelo mais livre e indeterminista de tratar a data e sua conversão. Permite agrupar elementos, combinar valores e gerar associações com vista a resultados estéticos. Estes agrupamentos de algoritmos desenvolvem as relações entre as diferentes partes do sistema e suas condições de forma mais livre. Por conseguinte, a estetização do modo como a data é organizada configura, por sua vez, elementos da composição, harmonia, timbre e ritmo.

Sonificação como sistema e cultura

As utilizações destes processos nas artes sonoras, ou em práticas onde o evento sonoro também é utilizado a par de outros medias, e esta questão da sonificação de primeira ordem ou segunda ordem, tornam-se um elemento secundário na sofisticação da produção atual, em que o conceito de sistema é o mais importante, na minha argumentação, para definir os processos de sonificação. Porque um sistema é um conjunto de meios e processos empregues para alcançar um fim, onde se podem integrar as tecnologias de registo dos dados “sensores”, os processos de “cálculo” ou algoritmos que trabalham os dados e as “conversões” e associações geradas pelo autor. Aí se integram os seus valores estéticos, “culturais”, objetivos e desejos, para transformar o medium “data” em som, por um processo de conversão em que todos estes processos acontecem no domínio do digital num tempo subjetivo, que pode ser constantemente alterado e manipulado em qualquer fase do processo, até mesmo nas condições iniciais. O conceito de sistema pode ser compreendido como combinação de partes, reunidas para concorrer para um resultado, de modo a formarem um conjunto, que é inicialmente construído e estruturado com um propósito. Desse modo, seja a sonificação utilizada para fins mais científicos ou artísticos, ela parte sempre de um pensamento sobre o sistema que pretende implantar para a obtenção de resultados, dados, informações que, posteriormente, pode manipular em qualquer instância e momento do processo. Daí a importância do conceito de ontologia simulada ou fabricada, porque a sonificação está sempre dependente de uma fabricação ou organização de um sistema que não pode emergir de forma espontânea. A única coisa que emerge de modo espontâneo são os dados captados pelo sistema, esses mantêm a flutuação e indeterminismo dos objetos ou eventos que analisam, dentro do que é permitido e calibrado pelos instrumentos de medição, que confluem em regras de leitura e reconversão dos dados. Tudo o que se segue nesses processos de seleção e organização da data são opções estéticas, formais, opções práticas e, por último, culturais. Dito isto, o único momento em que este sistema de processos perde o controlo é quando a conversão do data-som-evento se projeta no espaço da cognição e ganha forma, significados, aparência e movimento e, por fim, valor emocional que transcende todos os processos do sistema e estruturas de funcionamento. Limita-se a ser ou não ser uma experiência com valor estético, conteúdo para construir significação e compatibilidade que extravasa a experiência do objeto comum. E quanto maior é a sofisticação e invisibilidade do sistema e seus processos no acesso à experiência da obra, mais forte e completo é o seu significado. No tempo presente do evento sonoro, nenhum objeto se desloca, e tudo é um processo de intangibilidades mediadas pela cognição do evento sonoro ou musical. Para Langer, a confusão entre material e elemento tem vindo a gerar muitas discussões e dificuldades na teoria da arte, em parte pelo que a autora menciona como “superficial theory” (Langer, 1957:39). Sendo assim, se mantivermos a análise da música através de termos como “arranged tonal material” (ibid), vamos continuar a confrontar-nos com os mesmos problemas tradicionais, do que permitimos ou não na música, tecendo considerações sobre música pura, impura, artes híbridas, artes sonoras ou outra qualquer combinação.

Radiação e sonificação

A obra em que combino estes modelos de produção é Obscure Radiation de 2018-2019, apresentada em Valhadolid no Lava: Laboratorio de las Artes, integrada no projeto CreArt (Network of Cities for Artistic Creation) and European cultural fund e também suportada pelo fundo para a criação artística da Fundação Calouste Gulbenkian. Exploro nesta obra os meios tecnológicos, discursos científicos e potencial estético, com recurso a processos de sonificação direta e indireta. Assim, não

é um algoritmo que define uma estratégia sensível, nem o que constrói a experiência estética que se retira do contacto com a obra. Porque não é um algoritmo que constrói a experiência estética ou o todo da obra, ele é mais um elemento dentro de um sistema de interações, que são tanto da ordem do técnico, dos objetos e operações, quanto do estético. Concisamente, a sonorização é somente mais uma técnica ao serviço da expressão da arte e dos artistas, e não me parece importante pensar na utilidade como tentativa de ilustração de uma técnica na arte. O importante é o modo como o output do data-som nos faz sentir e provoca construção de experiência que nos retire da ideia de estarmos diante de um objeto comum, porque a arte não partilha qualquer relação com os objetos comuns e seu sentido utilitário. A arte propõe frequentemente uma transcendência da experiência comum. O conceito de sistema pode ser compreendido como combinação de partes, reunidas para concorrer para um resultado, de modo a formarem um conjunto, que é inicialmente construído e estruturado com um propósito. Desse modo, seja a sonificação utilizada para fins mais científicos ou artísticos, ela parte sempre de um pensamento sobre o sistema que pretende implantar para a obtenção de resultados, dados, informações que, posteriormente, pode manipular em qualquer instância e momento do processo. Daí a importância do conceito de ontologia simulada ou fabricada, porque a sonificação está sempre dependente de uma fabricação ou organização de um sistema que não pode emergir de forma espontânea. A única coisa que emerge de modo espontâneo são os dados captados pelo sistema que, no caso destas obras, são os valores de amplitudes elétricas gerados pelas variações de luz e sons captados por microfones indutores. Esses elementos mantêm a flutuação e indeterminismo dos objetos ou eventos que analisam, dentro do que é permitido e calibrado pelos instrumentos de medição, que confluem em regras de leitura e reconversão dos dados que, nesta criação, são microfones indutores e painéis solares. Tudo o que se segue nesses processos de seleção e organização da data são opções estéticas, formais, opções práticas e, por último, culturais implantadas num meio digital com um conjunto de regras. Dito isto, o único momento em que este sistema de processos perde o controlo é quando a conversão do data-som-evento se projeta no espaço da cognição e ganha forma, significados, aparência e movimento e, por fim, valor emocional que transcende todos os processos do sistema e estruturas de funcionamento. Limita-se a ser ou não ser uma experiência com valor estético, conteúdo, para construir significação e compatibilidade que extravasa a experiência do objeto comum. E quanto maior é a sofisticação e invisibilidade do sistema e seus processos no acesso à experiência da obra, mais forte e completo é o seu significado.

Território geográfico da radiação

A obra combina informação científica de dados luminosos em tempo real com outros elementos relacionados com este imaginário, com a ideia de sedimentação, também ela utilizada no contexto da informação, explosões, colisões, ondas magnéticas, entre outros fenómenos associados a tensão e radiação, tanto no limiar da perceção humana, como elementos que a sobrepõem intensamente e nos colocam em contacto com um nível de cognição mais primitiva das frequências sentidas pelo corpo como membrana. O som como um topo é explorado intensamente como uma fricção que faz colidir dois mundos na nossa mente, o do inaudível e o das grandezas de volumes e amplitudes extremas dos eventos do mundo. Nesta performance, a “data” é retirada de um processo de conversão analógica e digital que analisa e regista a atividade do campo magnético e luminoso do espaço circundante, onde somos imersos numa experiência intensa, dramática e obscura, em que forças impelem potências tão concretas e poderosas que nos obrigam a cair num mundo de abismo sensorial.

A partir da manipulação do som, imagem e data em tempo real, que vão sendo remisturados como num sistema de feedback sonoro e visual entre acontecimentos mediados em tempo real e outros dessincronizados temporalmente. Salta as escalas do visível tangível para o invisível até às grandes escalas do território geográfico da radiação. Este tipo de produção artística e investigação nas artes sonoras é cada vez mais um campo de meta-media, implicando a combinação de diferentes meios por processos complexos de simulação, permitidos pelo digital e pela computação. Servindo como exemplo também a obra que me foi comissariada intitulada Cosmos, 2018, do artista Chris Ziegler. Para a qual desenvolvi a sua música, uma composição sonora para 48 canais áudio espacializados e vários atos. Foi também um momento em que decidimos aplicar a tecnologia dos painéis solares e os métodos que estava a desenvolver de conversão da amplitude da luz para som, numa das cenas da peça. Esta peça foi apresentada no ZKM | Karlsruhe, Alemanha em 2018.

Radiação, imanência e desaparecimento

A obra Obscure Radiation, enquanto sistema de múltiplas relações, apresenta-se como um sistema audiovisual em que nenhuma relação se mostra ilustrativa de forma direta, mas sim como um grande sistema de causas e efeitos, manipulável entre os dados reais e as intuições, alterações e opções perante o material que está a ser modificado. Tal gera intensidades que se encontram no limite do som, ou data-som, em que o ruído estrutura uma estética geral acompanhada de variações pertencentes aos processos de sonificação das metodologias empregues. Daí se extraem e manipulam os fenómenos num tempo distendido, emergindo estruturas rítmicas com ataques rápidos, impulsos e sequências minimais irregulares. Toda a composição é uma expressão das instabilidades do material em constante mutação. As suas tensões psicológicas e físicas acentuam tanto a possível beleza da conversão da data como a sua possibilidade de gerar significados que vão além do seu carácter prático e meramente informativo e que, neste contexto, são utilizadas como técnicas de uma expressão de sistema onde múltiplas metodologias e variações formais operam. Em termos sonoros e musicais, a obra apresenta-se com uma textura sonora granular, abstrata, que nos remete para elementos em tempo real no momento da performance. Pela natureza das tecnologias envolvidas, o som gerado expede-nos para uma ideia de libertação de energia, um vórtice de abismo eletrónico de música drone em que perdemos a referência ontológica dos objetos sonoros ou do material em utilização. A obra Obscure Radiance propõe uma compreensão mais aberta do fenómeno musical ou sonoro. Porque se deduzimos que a música, som ou o data-som nos remete para um tempo virtual que está para além do arranjo tonal, então é uma modelação mental de eventos e sentimentos que são percecionados num tempo subjetivo que, em última instância, lida com formas tonais, virtuais, num estado de imanência e desaparecimento na cognição e que só podem ser acedidas por intermédio da memória, com recurso ao tempo virtual subjetivo da relação entre escuta, desaparecimento e memória.

Conclusão

A sonificação é uma técnica que recentemente tem vindo a ganhar expressão no contexto das artes sonoras por influência dos meios computacionais e do ambiente digital, pelos meios, recursos, softwares neles contextualizados, facilidade de manipulação da informação “data” e sua democratização na sociedade da tecnocultura. Dito isto, concebo o contexto social e tecnológico propício para a manipulação da “data” na arte que, neste caso específico, se centra nos fluxos de informação que procuram ser convertidos em som ou endereçados a regras de composição e manipulação sonora ou musical. Contudo, estes eventos-data-sonoros devem ser compreendidos como pertencentes a uma ontologia simulada e fabricada, visto que este tipo de som não provém especificamente dum evento ou fenómeno de vibração. É, sim, um reflexo dos fluxos de informação produzidos por sensores, suas medições e conversões numéricas dentro de um sistema computacional-digital, onde não existe deslocação de ar, materiais que vibram ou outra qualquer realidade propulsante de vida, nem compassos de acidente rítmico nem impacto de onde o som, enquanto ondulação e pressão no ar, possa evidenciar-se. Digamos que este tipo de evento sonoro, gerado pela sonorização, pode ser compreendido como um data-som que, na sua origem, é um silêncio ou mutismo, obtido tanto na ciência como na arte com base no querer do autor, sua capacidade de imaginar as conversões da “data” para “som” com base nos seus valores estéticos, tecnológicos, processuais e formais, como também pelos objetivos do que pretende trazer ao nível da perceção humana auditiva, procurando as condições necessárias para a conversão, que é o meio de “trazer à realidade” o data-som, por processos algorítmicos, simulados e fabricados artificialmente por conversões e transformações. Desse modo, o data-som é um data-evento-sonoro que se encontra dependente das condições computacionais-tecnológicas simuladas que lhe são proporcionadas pelo autor e pela ecologia tecnológica envolvente do artefacto artístico como sistema. É, contudo, uma área em desenvolvimento e relativamente nova, que hoje é favorecida pelas tecnologias open source em termos de hardware, sensores entre outras, como também por software e suas linguagens de programação, e o modo como os conhecimentos circulam na web, nas comunidades dentro e fora das academias, o que contribui para uma democratização dos meios científicos, técnicos e conhecimentos ao dispor dos artistas e comunidades. Este fator de democratização das tecnologias é observado nos meios técnicos que são utilizados na produção e resultados destas obras. Os processos e metodologias envolvidos nos sistemas de sonificação trazem diversificadas abordagens para as artes sonoras por influência dos meios digitais e analógicos em circulação socialmente, transformando os discursos e práticas artísticas. Porque a arte, na sua essência, não lida com processos de comunicação ou ilustração diretos, mas sim simbólicos e subjetivos. Este fator molda os significados da sonificação científica ou artística. Esta questão é fundamental para compreendermos o data-evento-sonoro fora da ontologia vibracional, como proponho. O objetivo é tentar colocar estes processos em discussão na musicologia e arte-digital, compreendendo que a transposição entre disciplinas artísticas e metodologias técnicas implica modos de construção teórica e sensibilidades diferenciados. Assim sendo, estes conceitos necessitam de ser teorizados e sustentados, visto que o futuro nos trará desafios ainda mais complexos que colocarão paradoxais implicações nas disciplinas artísticas, científicas e técnicas.

Nota

Para consulta dos projetos aconselho visitarem os seguintes links:

Home Page: https://hugopaquete.tumblr.com/

Hertz-Laboratory / ZKM: https://zkm.de/en/person/hugo-paquete

Notas Finais

1 “A arte da transmissão” (Tribe, 2006:7).

2 “Deste modo entenda-se Arte e Tecnologia como referente às práticas, como a arte eletrónica, a arte robótica e a arte genética, que envolvem tecnologias novas mas que não se relacionam necessariamente com os media.” (Tribe, 2006:7).

3 “This revival of modernist strategies of abstraction, Reduction, self-referentiality, and attention to the perceptual act itself-what could be called, without irony, “neo-modernism”--is nowhere more evident than in sound art. Appropriately, “The Moderns” included a sound-art component, curated by Anthony Huberman, that featured many of the field’s leading practitioners, among them Carsten Nicolai, Richard Chartier, Carl Michael von Hausswolff, Bernhard Gunter, and Kim Cascone”. (Cox, 2018)

Agradecimentos

This work is financed by national funds through the FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., in the ambit of the project UIDB/04019/2020.

Bibliografia

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Gresham-Lancaster, S; “Relationships of sonification to music and sound art”. AI & Soc 27, 207–212 (2012). https://doi.org/10.1007/s00146-011-0337-3. Acedido em 21 de março de 2020.

Hermann, Thomas, Hunt, Andy, Neuhoff, John G; “The Sonification Handbook”: Logos Publishing House. (2011)

Kramer, Gregory, Walker, Bruce, Bonebright, Terri, Cook, Perry, Flowers, John H., Miner, Nadine and Neuhoff, John; “Sonification report: Status of the field and research agenda”: Technical report, ICAD/NSF. (1999)

Langer, Susanne; “Problems of Art de Susanne: Ten Philosophical Lectures”: Charles Scribners`s Sons. (1957)

Lysloff, Rene T. A., C. Gay, Jr. Leslie; “Music and Technoculture”: Wesleyan University Press. (2003)

Licht, Alan. 2007. Sound Art, Beyound Music Between Categories; Rizzoli International Publications, inc.

Tribe, Mark. Jana, Reena. Grosenick, Uta. 2006. New Media Art, Taschen.

Paquete, Hugo: “Dispositivos na Prática Artística Contemporânea #2”, Edition: Centro de Estudos Arnaldo Araújo da CESAP/ESAP, Chapter: “META-ESCUTA: Objeto-Sonoro Espetro, Imanência Vibrátil e Resto Cognitivo”, Edição: CEAA: Centro de Estudos Arnaldo Araújo. Grupo de Arte e Estudos Críticos, Editores: Eduarda Neves, pp.29-59. (2015)