Abstract
During World War II, the early sound of Beethoven’s Fifth Symphony and the rhythmic association between its opening notes and the Morse code representation of the letter V were propagated by London BBC radio and other media instruments as a symbol of the desire to victory that affected and led the allies to the heroic effort against the expansion of German Nazism. The cinema played an important role in spreading this fighting sentiment among viewers, and the presence of the Fifth’s theme in the music tracks, often in opposition to themes by composer Richard Wagner, can be seen in the American animations Education for Death (1943), Scrap Happy Daffy (1943), Out the Frying Pan into the Firing Line (1942). Hitler’s stated predilection for Wagner may justify their association in these soundtracks, but why did we choose Beethoven’s Fifth Symphony as a symbol of the allies? Considering the justification of the diagrammatic similarity of the beginning of music with the letter V in Morse as insufficient, this study sought new elements that could have motivated this choice. Through literature review and score analysis, aspects of the musician’s life and work, especially the Fifth, were important justifications for its connection with feelings of overcoming and victory. The arguments presented aim to increase the reflections on the alliances between art and politics that actually occurred in the period of World War II.
Keywords: Beethoven’s Fifth Symphony in World War II, Animation Cinema, Musical Track in the Cinema of Animation, The Fifth Symphony and the V of Victory, Hitler and Wagner.
Introdução
Em 25 de janeiro de 1965, o jornal Folha de São Paulo (Brasil), por ocasião do falecimento do primeiro ministro inglês Winston Churchill (1874 – 1965) no dia anterior, publica:
CHURCHILL MORREU LONDRES, 24 (FOLHA) - Pouco depois das 8 horas, o ex-primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Winston Churchill, faleceu em sua residência, no Hyde Park Gate, após nove dias de agonia em virtude de uma trombose cerebral que sofrera no dia 15 passado. [...]. Divulgada a notícia, a BBC iniciou uma programação especial, transmitindo os principais discursos de Churchill; pouco depois, foi levada ao ar a 5a Sinfonia de Beethoven, cujos acordes iniciais - três notas breves e uma longa - correspondem à letra V, no código Morse, representando o ‘V da vitória’ que Churchill simbolizou e com o qual estimulava todos os pontos de resistência à agressão nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.1
Mais uma vez, Beethoven foi lembrado, principalmente pela associação de sua Quinta Sinfonia com o desejo determinado do dirigente inglês de vitória sobre o nazismo alemão. Durante o conflito, o gesto do V da vitória simbolizado por Churchill, a representação dessa letra em código Morse (três sinais curtos e um longo) e sua associação com o início da Quinta Sinfonia se mostraram uma eficaz propaganda de guerra dos aliados, amplamente divulgada pela mídia por meio dos jornais, rádios, telégrafos e o cinema, contagiando e conduzindo os compatriotas e aliados a um esforço heroico de resistência ao avanço nazista. A rádio BBC de Londres, importante mecanismo de informação dos aliados sobre os rumos dos conflitos, adotou esse tema inicial da Quinta como prefixo de suas transmissões. A ex-integrante da Resistência Francesa, Renné de Carvalho, comenta o importante papel das rádios na divulgação das informações dos combates e o crescente aumento da audiência, sobretudo a partir do momento em que as notícias começaram a ficar mais favoráveis:
As pessoas ficavam também mais corajosas um pouco, e, a cada janela, com o ouvido bem atento se podia ouvir assim - ‘tam tam tam tahmm’, o sinal da BBC de Londres. (Olna TV 5/7, 2009)
De acordo com o jornalista Alberto Dines, que naquela época sofreu diretamente a angústia de ter familiares judeus que viviam na fronteira da Polônia com a Rússia, “a segunda guerra mundial foi o primeiro conflito verdadeiramente midiático” (Olna TV 1/7, 2009). O cinema foi um poderoso instrumento da propaganda de guerra de ambos os lados oponentes, nos quais os hinos patrióticos eram a trilha musical predominante capaz de exercer uma força psicológica eficaz nos espectadores.
Nas películas dos aliados, podemos destacar este tipo de trilha musical na série de documentários de guerra Why We Figh? (1943) produzida pelo premiado diretor italiano naturalizado americano Frank Capra. Animações de estúdios americanos (Disney, Terrytoons) e do canadense National Film Board of Canada também utilizaram músicas cativantes para propagar o ‘V’ da vitória. Mas, além das músicas entusiasmadas e marciais, o tema do primeiro movimento da Quinta de Beethoven se fez presente no cinema, nem sempre de forma tão explicita, sobretudo para um ouvinte de hoje distante daqueles momentos difíceis, mas certamente percebida pelos envolvidos física e emocionalmente naquele nebuloso período histórico.
Em animações da época, entre elas a produção da Walt Disney - Out of the frying pan into the firing line (1942) e a da Warner Bros - Scrap Happy Daffy (1943)2, protagonizadas pelas populares estrelas da animação americana Minnie Mouse e Pluto, na primeira, e Daffy Duck, na segunda, as evocações ao tema da Quinta aparecem de maneira pontual, mas claramente perceptíveis.
Em Out of the frying pan into the firing line as donas de casa americanas são convocadas, por meio do rádio, a economizar gordura de cozinha que poderia ser transformada em poderosos explosivos capazes de destruir o adversário. As ilustrações imagéticas dos ataques dos aliados narrados na mensagem radiofônica no início da animação apresentam a associação dos dois símbolos da resistência, a letra V e a sonoridade inicial da Quinta. O trecho se refere ao momento de um ataque ao navio inimigo que se parte e afunda no formato da letra V acompanhado pelas notas iniciais do tema musical da sinfonia, e nos canhões vitoriosos dos aliados que, na sequencia, aparecem posicionados no formato da letra V.
Em Scrap Happy Daffy, o tema da Quinta soa também no início da animação, quando o Füher lê no The American Press a manchete em primeiro plano - “Mussolini in scrap heap now lets junk Hitler - Daffy”, associada à “fotografia” do Pato fazendo o gesto do V da vitória. Vale destacar que, na sequência, a fúria de Hitler com a manchete do jornal é acompanhada da trilha musical com trecho da abertura da ópera Rienzi, de Richard Wagner.
Mas por que escolhemos a Quinta? Considerando a semelhança diagramática da representação da letra V em Morse com as três notas curtas e uma longa que iniciam a música de Beethoven como justificativa insuficiente para a escolha desse compositor e dessa sua obra como símbolos de força e determinação dos aliados, esse estudo busca novos elementos que possam ter motivado essa associação. Os argumentos advêm de fragmentos da vida e de posições políticas e ideológicas adotadas por Beethoven, assim como de princípios de organização musical intrínsecos à obra estudada.
Entretanto, quando abordamos o papel de músicos e músicas na Segunda Guerra, fica impossível negligenciar a influência de Richard Wagner (1813-1883) neste contexto. Ele foi o escolhido de Hitler para representar a supremacia alemã e também nas animações de propaganda dos aliados sua música aparece associada à temática da austeridade nazista, como pode ser conferido em Education for Death (Walt Disney Productions - 1943) e na já citada passagem de Scrap Happy Daffy (1943). Portanto, antes de dedicarmos à análise da escolha da Quinta pelos aliados, abordaremos o contraponto wagneriano que dialoga com o tema principal do estudo.
Hitler e Wagner – Consonância de ideias antissemitas
A amizade do Füher da Alemanha nazista com a família Wagner era publicamente revelada, sobretudo com a nora do compositor que assumiu a direção do Festival de Bayreuth3 em 1930, Winifred Wagner, viúva do compositor e regente Siegfreid Wagner (1869 – 1930), filho de Richard Wagner. As composições do Wagner pai eram declaradamente do gosto de Hitler, estavam presentes nos eventos organizados por ele e eram utilizadas também com finalidade política e de propagação da ideologia nazista.
De acordo com David Large (Millington,1995, 456), a influência póstuma de Wagner na Alemanha foi de certa forma reivindicada pelos seguidores do músico pertencentes ao então chamado Círculo de Bayreuth, entre eles Cosima Wagner4. Segundo esse autor, antes mesmo de Hitler, “os superpatriotas do Reich constantemente invocavam o legado de Wagner para defender a ‘sagrada missão’ da Alemanha na Primeira Guerra Mundial”, e acrescenta:
Adolf Hitler copiaria esta prática na Segunda Guerra mundial, mas é importante que fique claro que o legado de Wagner já tinha sido completamente apropriado pelos nacionalistas alemães bem antes que o Füher explorasse as obras wagnerianas como a temática musical do Terceiro Reich. (Idem, 457)
Beethoven teve um papel importante na formação musical de Wagner, mesmo sendo a música deste último destinada quase que exclusivamente ao gênero operístico. Em 1860, Wagner falou de sua convicção, na época, de que “‘a corrente vigorosa em que Beethoven havia transformado o fluxo da vida alemã poderia ser canalizada para o leito do drama musical’” (Wagner apud Millington, 1995, 96). A identificação com a música de Beethoven se dá sobretudo pelo aspecto rítmico e pela estruturação formal, os princípios de organização e desenvolvimento de motivos, ampliando a ideia de melodia para a forma de uma composição contínua e coerente (Millington, 1995, 98). Por outro lado, Wagner terá um importante papel como propagador da obra de seu conterrâneo. No período de 1829-30, entre as peças originais do jovem Wagner há um arranjo para piano da Quinta Sinfonia. Posteriormente, já como renomado maestro, por diversas vezes interpretou obras de Beethoven, demonstrando especial predileção pelas Sétima e Nona sinfonias. Mas, se a música foi capaz de aproximar esses artistas, as posturas pessoais refletidas em suas posições ideológicas e políticas se mostram importantes argumentos para que fossem colocados em lados opostos durante a Segunda Guerra.
Figura 1. Winifred Wagner e Adolf Hitler
Extraída de Segredos do Terceiro Reich – As Mulheres de Hitler 5
A aproximação entre Hitler e família Wagner extrapola o relacionamento sócio-cultural e o encanto pessoal (Figura 1), e se apoia nas concepções racialistas e antissemitas compartilhadas e propagadas, em épocas distintas, pelo ditador e pelo compositor.
Por mais vitriólico e individualmente caracterizado que fosse, o antissemitismo de Wagner não era um fenômeno isolado. Em vez disso, deveria ser visto como uma manifestação extraordinariamente concentrada de uma tradição histórica que irrompeu sob uma forma específica no contexto do nacionalismo germânico do século XIX. (Millington, 1995, 181)
A onda de nacionalismo e a busca de identidade nacional se afirmavam no povo alemão do século XIX, que passava a execrar quaisquer elementos que pudessem se considerados alienígenas. Para eles, os judeus eram “intrinsecamente não-germânicos [...]uma raça de colonos errantes [...] e forasteiros sem raízes” (Milligton, 1995, 181-185). Entre as figuras que influenciaram de maneira determinante o ambiente cultural na Alemanha e as posições antissemitas de Wagner, podem ser citados: o naturalista, Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), um dos primeiros autores a iniciar o desenvolvimento do pensamento racialista, que acreditava nos fatores ambientais como determinantes das diferenças nas aparências, nos formatos de crânio e a na cor da pele das pessoas; e o diplomata e escritor francês, Conde Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), amigo de Wagner, que, em 1855, escreveu o “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas” [Essai sur l’inégalité des races humaines], um dos primeiros trabalhos sobre eugenia e racismo (Millington, 1995, 30).
Em 1850, Wagner publicou o ensaio Das Jundentum in der Musik (O judaísmo na música), por meio do qual ele se posicionou de acordo com as proposições antissemitas tradicionais, acusando a falta de raízes como argumento para a incapacidade do povo judeu de articular, de maneira natural e instintiva, sentimentos e emoções do povo alemão. Para ele, os artistas eram judeus comerciantes incapazes de reproduzir uma cultura própria, ao contrário, eram caracterizados por imitarem a cultura hospedeira (Milligton,1995, 181-185).
Wagner publicou essas opiniões antissemitas, ainda segundo Millington (Ibdem), não apenas motivado pelo contexto histórico cultural de sua época, mas também por inseguranças e experiências pessoais. Os compositores judeus-alemães Felix Mendelssohn (1809–1847) e Giacomo Meyerbeer (1791–1864) foram merecedores dos ataques do autor do ensaio. Homem de negócios que mantinha o monopólio da bilheteria da Ópera de Paris com seus espetáculos grandiosos, Meyerbeer é lembrado por Wagner como “referência às experiências infinitamente frustrantes e degradantes dos anos em Paris (1839 – 42)”.
As inseguranças e frustações do próprio Wagner se refletiram nas da sociedade alemã em geral, e os sentimentos a que ele deu voz feriram uma corda sensível entre seus conterrâneos. Mais ainda, em anos posteriores, seu status e seu carisma reforçaram o poder da mensagem, dotando-a de uma gravidade e de uma respeitabilidade que a ela faltvam em outras manifestações. (Millington, 1995,183)
Na animação Education for Death, que trata da lavagem cerebral sofrida pelos jovens soldados alemães convocados para defender a nação, o tema da Cavalgada das Valquírias, da ópera de Wagner A Valquíria, é explorado na trilha musical. Além disso, a perseguição aos artistas judeus e o extermínio de sua obras de arte são retratados na cena da ação propagandística nazista da queima de livros, da qual destaco a imagem de uma partitura de Mendelsohn sendo destruída na fogueira.
Como coda para esse breve contraponto wagneriano, aproveito a reflexão sugerida pela da emissora britânica BBC na ocasião do bicentenário do nascimento do compositor, reproduzida pela revista semanal brasileira Carta Capital, em 23 de março de 2020.
Podemos escutar, assistir ou executar a música de Wagner de consciência limpa? Terá ela sido pervertida de modo desprezível pelos nazistas, ou a adulação deles meramente expôs suas perversões inerentes?6
Beethoven - ideais de harmonia e reconciliação
Se, por um lado, Wagner compartilhava das ideias difundidas na Alemanha de sua época, sobretudo aquelas que consideravam as diferenças genéticas e fenotípicas entre as raças como argumentos fecundos para distinção da importância de cada uma delas para a evolução da humanidade, por outro se destaca em Ludwig van Beethoven (1770 – 1827) a influência dos ideais iluministas.
Na cidade de Bonn, o jovem plebeu, músico da corte considerado “de boa e serena conduta” (Solomon, 1987, 66) construiu sua formação de maneira praticamente autodidata. Protegido por palacianos, nobres e músicos renomados e ilustrados, Beethoven teve contato direto com a vida intelectual que efervescia naquela cidade.
Havia uma disseminação extraordinária da literatura e do pensamento iluministas em Bonn. Os livreiros, nas décadas de 1770 e 1780, vendiam as mais recentes edições das obras de Rousseau e Montesquieu, a par dos escritos de Klopstock, Herder, Schiller e Goethe. (Solomon, 1987, 64)
Em 1789, Beethoven ingressou no ambiente universitário onde fervilhavam os ideais iluministas do movimento artístico Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) liderado pelos literatas alemães Johann Wolfgang von Goethe (1749 – 1832) e Friedrich Schiller (1759 – 1805), e eram comemorados os movimentos liberais que sopravam da França. Os iluministas questionavam a autoridade e a tradição representadas, sobretudo, pela igreja e pelo poder absoluto dos reis em detrimento do prejuízo da maioria da população. Acreditando na derrota desse modelo, suas convicções se apoiavam nos ideais de igualdade, fraternidade e liberdade da Revolução Francesa. Beethoven (Solomon, 1987, 69 – 71) era contra a tirania e o absolutismo opressivo, mas não advogou a abolição da realeza. Suas ideias se relacionavam aos príncipes representantes da monarquia ilustrada, “um herói quimérico que poderia dissolver os intrincados problemas das relações entre senhores e homens” (Idem, 71). Apesar dos desapontamentos sofridos com tais líderes ideais7,
Ao longo de toda a sua vida, ele seria persistentemente guiado por uma crença consciente nos princípios de liberdade política, excelência pessoal e ação ética. Sua devoção à arte e beleza, e sua aceitação das principais noções do Iluminismo – virtude, razão, liberdade, progresso, fraternidade universal – serviram, talvez, para conter as forças eruptivas em seu íntimo que haviam sido engendradas pelas condições de sua infância e pelas sérias dificuldades de seus anos adolescentes. (Solomon, 1987, 72)
No final de 1792, Beethoven partiu de Bonn, que naquela época vivia momentos de guerrilha e repressão aos partidários dos ideais liberais, e foi para Viena, lá permanecendo até os últimos dias de sua vida. Solomon (1987) lembra que estar entre os nobres e se passar por um deles foi a maneira encontrada pelo músico de se afirmar econômica e socialmente, em igualdade com a aristocracia, mas em sua convicção sobre o conceito de “aristocracia eletiva e não hereditária, baseada mais no mérito do que no nascimento” (SOLOMONN, 1987, 132). E essa posição, de acordo com o autor, o aproxima de pensadores seus contenporâneos como Rousseau, na França, e August von Kotzebue, na Alemanha. “Quanto à questão de ‘ser nobre’, penso ter-lhe dado suficientes provas de que o sou, em princípio.” (Beethoven apud Solomon, 1987, 132)
Em Viena, Beethoven teve aulas com músicos renomados, como Haydn e Salieri, e se apresentou regularmente como músico pianista e compositor entre os aristocratas. Seu talento e criatividade musicais já demonstravam distinções com o estilo vienense clássico daquela época (Haydn e Mozart) e suscitavam reações conflitantes em seus professores e ouvintes, “misto de afeição e ressentimento, de admiração e hostilidade” (Solomon, 1987, 111). Foi também em Viena que ele conheceu Goethe e Schiller, os líderes mais proeminentes do movimento artístico alemão.
Os escritos desses dois autores influenciaram os espíritos da época, como foi o ocorrido com O sofrimento do jovem Werther, romance escrito como uma série de cartas de Werther ao seu amigo Wilheim, por meio das quais ele descreve um amor não correspondido e os sentimentos que o conduzem vertiginosamente ao suicídio. Escrito por Goethe, em 1774, portanto, com apenas 24 anos, o romance influenciou as atitudes e aparência dos jovens de sua época. Esse tipo de sofrimento por desilusões amorosas e paixões inacessíveis foi vivenciado repetidas vezes por Beethoven, e sua paixão não correspondida por sua aluna Maria Anna von Werterholt foi comparada ao sofrimento do jovem personagem de Goethe (Solomon, 1987, 73).
De Schiller, não poderia deixar de ser citado o poema Ode à Alegria, que desde 1793 havia inspirado o músico, mas só mais tarde veio coroar a Nona Sinfonia em Ré Menor, Op.125 (1822-1824), uma obra “por muito tempo madurecida e longamente elaborada” (Trancheford, 1990, 64).
Foi um longo caminho desde a concepção até a realização final do projeto da ‘Ode à Alegria’, cuja inclusão musical na Nona Sinfonia talvez represente a mais clara declaração do desejo de Beethoven de harmonia e reconciliação. (Solomon, 1987, 71)
Em 1824, a Nona foi apresentada em Viena, e o texto entoado pelo coral no último movimento é uma adaptação do poema de Schiller feita pelo próprio Beethoven. Segundo Solomon, a Nona sinfonia retoma o modelo anacrônico do Iluminismo fracassado, que só poderia voltar “– como esperança pura – após o evidente fracasso histórico do sonho que Rousseau tinha dividido com Schiller e com o jovem Beethoven” (Solomon, 1987, 412).
Na reorganização dada por Beethoven ao poema, somos apresentados primeiramente à Alegria, a encarnação da mãe nutriente (‘Toda a criação bebe alegria nos seios da natureza’), em cujo abraço envolvente e protetor toda a humanidade está reunida (‘Todos os homens serão irmãos lá onde todas as asas tão doces nos aguardam’), assim abrindo o caminho para a reunião com o pai benevolente/Deus (‘Irmãos acima da abóbada estrelada, certamene habita um pai cheio de bondade’).” (Idem, 417)
O final apoteótico da Nona Sinfonia coroa o espírito da fraternidade romântica contido na obra e no espírito do autor, como revelado em suas palavras:
Desde a infância, meu coração e minha alma têm estado repletos do terno sentimento de boa vontade e sempre estive propenso a realizar grandes obras.[...] _Ó divindade, vistes o mais íntimo de minha alma e sabes que aí reside o amor pela humanidade e o desejo de fazer o bem. (Beethoven, apud Solomon, 1987, 164 – 165)8
A Quinta Sinfonia – símbolo aliado
O maestro brasileiro Isaac Karabtchevsky fez o seguinte comentário sobre a apropriação da Quinta Sinfonia na propaganda de guerra:
Os aliados não poderiam ter escolhido tema melhor para representar o anseio pela liberdade, pela luta contra a injustiça, contra a barbárie que se instalou naquele século”. (Olna TV 7/7, 2009)
Segundo Karabtchevsky, a obra transmite o sentimento de autossuperação, já que quando compôs a Quinta Beethoven estava praticamente surdo, usando somente o ouvido interno para escrevê-la, e conclui:
O que está implícito, digamos, no aspecto subliminar, é que esta é uma obra de autossuperação. É a luta que o homem desenvolve contra os limites da própria existência, e eu acho que é isto que está implícito no V da vitória. Escapa à música; aí já tem um sentido filosófico. (Olna TV 7/7, 2009)
Beethoven compôs a Quinta Sinfonia entre 1805 e 1808, e já no final da década de 1790 os primeiros sintomas da surdez se evidenciaram. As inúmeras consultas médicas e tentativas infrutíferas de controlar a doença o levaram a atitudes depressivas e alimentaram a ideia de suicídio, que só foi superada pela convicção de sua missão artística. Essas ideias e convicções foram registradas por ele no Testamento de Heiligenstad, de 6 de outubro de 1802, deixado aos irmãos mais novos, Kaspar Anton Carl van Beethoven e Nicolaus Johann van Beethoven (Solomon, 1987, 164-167).
Assim, como sugere o maestro Karabchewsky, este por si só poderia ser um forte argumento para a escolha da peça como exemplo de determinação, superação e capacidade de extrair da tragédia e do sofrimento algo maior e melhor. Se lembrarmos que este compositor ao transcender o problema auditivo que o acompanhou até seus últimos dias, além de outras obras, compôs mais quatro sinfonias, a Quinta se torna ainda mais emblemática.
Figura 2. Representação do tema do I movimento da Quinta Sinfonia.
Extraída de Music Animation Machine - MAM 9
A Quinta Sinfonia é uma das peças mais conhecidas e propagadas da literatura musical erudita, ressurgindo em variadas versões, estilos e instrumentações. Podemos inferir que, se os mentores da associação da letra V com a Quinta tivessem conhecido o trabalho que o compositor americano Stephen Malinowski (Califórnia, 1953) vem desenvolvendo, desde 1970, com a Music Animation Machine MAM10, possivelmente eles ficariam maravilhados com a possibilidade de demonstrar de maneira sincrônica a estreita relação entre a música e sua representação gráfica (Figura 2). Mas, já no início da década de 1940, a ideia de associar uma expressão visual a uma expressão sonora não era de fato algo inovador.
No início do século XX, as tendências das artes visuais já propunham novas experiências sinestésicas e abstratas, quebrando com a tradicional busca de representação realista da vida das pessoas e das coisas. Wassily Kandinsky (1866 – 1944) foi um dos importantes nomes dessa geração de artistas, e com sua pintura abstrata lírica enriquecia a experiência artística com conteúdo mais simbólico, gestual e subjetivo, e com maior liberdade de criação e interpretação das obras. Essa tendência subsistiu no período entre as duas guerras, mas veio a ser mais conhecida após a Segunda Guerra Mundial.
Kandinsky foi professor na famosa escola de arte vanguardista alemã - Bauhaus, e em 1928 tornou-se cidadão alemão. Em 1933, Bauhaus foi fechada pelo nazismo e, em 1937, as obras do artista foram confiscadas pelos nazistas. Kandinsky, então, fugiu para a França e se naturalizou cidadão francês em 1939, lá falecendo em 1944.
Kandinsky sempre demonstrou interesse por outras expressões artísticas, em especial pela música, e dessa visão universalizada das artes resulta uma crença na sinestesia, na possível correspondência entre sons, cores, imagens e perfumes. A geometria se introduziu em suas obras, e elementos como círculos, triângulos e quadrados passaram a dialogar em suas pinturas. Em 1926, ele publicou suas teorias estéticas em Ponto e linha na superfície, cuja primeira edição foi republicada um ano depois, sem nenhuma alteração, conforme consta no preâmbulo da segunda edição datado de janeiro de 1928 (Kandinsky, 1997).
Figura 3. “O segundo tema traduzido em pontos” (Kandinsky, 1997, 39).11
No capítulo dedicado ao Ponto, Kandinsky (1997) expressa o interesse pela obra de Beethoven, quando nos apresenta quatro representações de trechos da Quinta Sinfonia, entre elas a da Figura 3. Dessa maneira, ele propaga a relação entre a sonoridade da música de Beethoven e suas possíveis representações visuais.
Ainda que as análises expostas até aqui apontem, de maneira inequívoca prováveis justificativas para a escolha da Quinta Sinfonia de Beethoven e tudo que ela representa como símbolo da força e resistência aliada na segunda guerra, apresento mais um elemento que corrobora essa ideia: a obra musical em si, vista sob o aspecto de sua estrutura formal e suas relações tonais.
A partitura da Quinta Sinfonia começou a ser escrita em 1805 e terminada em 1808, e em 22 de dezembro de 1808 ela foi interpretada publicamente pela primeira vez no Theater an de Wien de Viena, junto com a Sexta (PastoraI). A obra foi recebida com muita comoção pelo público e, de acordo com E. T. A Hoffman, escritor de literatura fantástica, compositor e importante crítico alemão da época, a Quinta Sinfonia “exprime com alto grau o romantismo na música, o romantismo que revela o infinito” (Hoffman, apud Trancheford, 1990, 55). O compositor e regente francês Hector Berlioz (1803 – 1869), após a apresentação da obra em Paris em 1834, escreveu: “O auditório, num momento de vertigem, abafou a orquestra com seus gritos... Um espasmo nervoso agitou toda a sala.” (Berlioz apud Tranchefort, 1990, 55)
O tema do primeiro movimento da Quinta Sinfonia é conciso e diferente dos padrões da época. Constituído de três notas curtas e uma longa, ele se impõe desde o princípio, encabeçando como um mote, uma epígrafe, o conjunto do movimento. Ele será repetido de maneira obstinada e infatigável neste primeiro movimento da obra que se completa se completa em quatro movimentos: I. Allegro con brio – II. Andante con moto – III. Allegro – IV. Allegro
Figura 4. Motivos iniciais dos temas do I e do III movimentos da Quinta Sinfonia (Elaborada pela autora)
Outro importante ineditismo da obra é a proposição da ideia fixa, cíclica, onipresente, comandando a organização de uma obra de grande porte. O tema inicial das três notas curtas e uma longa reaparecerá nos quatro movimentos, mas de maneira mais evidente no III - Allegro e na coda final do IV - Allegro.
Comparando os temas do I e do III movimentos (Figura 4), é fácil perceber que no III Beethoven apresenta uma reiteração variada do motivo fundamental exposto no início da obra. A marca rítmica de três notas curtas e uma longa é presente nos dois temas, mas a semelhança entre ambos pode ser destacada também pelos aspectos melódico e harmônico. No melódico, o intervalo de 4ª justa demarca o âmbito das duas linhas que têm sentido predominantemente descendente (Sol – Ré, no tema do I; Sib – Fá, no tema do III). E a harmonia em ambos os trechos pode ser sintetizada partindo da função da tônica (I grau da escala; repouso) das respectivas tonalidades (Dó menor, no I; Mib maior, no III) em direção à dominante (V grau da escala; tensão) dessas tonalidades.
A questão tonal é outro aspecto que pode ser explorado, no sentido de agregar significado à obra neste contexto de vitória, transcendência e superação.
A Quinta é a primeira sinfonia para a qual Beethoven escolhe uma tonalidade menor (Dó menor) como condutora principal do fluxo musical. Depois dela, apenas na Nona Sinfonia ele irá novamente explorar uma nova tonalidade menor, Ré menor. Na Quinta, o peso da cor menor da tonalidade é enfatizado pelo caráter global do tema principal, inclusive o seu direcionamento descendente. Essa característica inicial será contrastada, sobretudo, no IV Movimento – Allegro, ainda que a rítmica de três curtas e uma longa também nele possa ser percebida. “Vigoroso uníssono de toda orquestra com um tema ‘vencedor’, luminoso” (Trancheford, 1990, 57), o último Movimento da sinfonia está em tonalidade maior, Dó maior. E ainda, seu direcionamento melódico predominantemente ascendente dota-lhe de um brilho contrastante que pode ser associado ao sentimento de glória da conquista, da vitória, que a alcunha lhe sugere.
Conclusão
Buscou-se nesse estudo reunir elementos que pudessem esclarecer a escolha do tema inicial da Quinta Sinfonia de Beethoven como um mote impulsionador da resistência dos aliados à investida partido nazista alemão na segunda guerra mundial. Esse tema musical e os demais elementos a ele relacionados aqui expostos possivelmente conferiram força e unidade à ideologia dos aliados, e foram propagados pelos meios de comunicação (rádio, imprensa, telégrafo, cinema) e também pelas animações cinematográficas daquela época. A música, a Quinta, símbolo de superação pessoal do compositor, com sua ideia temática concisa e obstinadamente recorrente dando unidade à obra; os ideais e posturas de Beethoven a favor de harmonia e reconciliação, contrastando com as ideias antissemitas de Wagner; a prévia representação pictórica do tema musical da Quinta por Kandinsky, artista de origem russa, mas também cidadão alemão perseguido pelo nazismo; a semelhança diagramática da representação do tema da Quinta e da letra V em Morse; o gesto do V da vitória utilizado pelo líder inglês conduzindo os cidadãos à luta, foram aqui agrupados e considerados potencializadores do espírito de liberdade, fraternidade, superação e triunfo envolvidos no esforço heroico de resistência às ideias hitleristas. Não se propôs discutir nesse estudo, entretanto, a capacidade ou não da música, no caso a Quinta Sinfonia de Beethoven e também a obra de Wagner, representar algo exterior a ela própria, mas sim o poder que ela pode adquirir quando apropriada como agregadora de significados, ideais e convicções. Ainda que não se possa falar em resultados vantajosos de uma guerra, no conflito em questão ao menos a reação aliada foi capaz de suplantar a expansão dos ideais nazistas e a continuidade de suas barbáries. E, ainda, a música de Wagner e Beethoven permanece como expressão genuína desses artistas geniais. A música de Beethoven, em especial, parece ir além; ela continua inspirando e estimulando ações positivas das pessoas em relação, principalmente, aos ideais humanistas e ao meio ambiente, como podemos conferir nas propostas de comemoração dos 250 anos do compositor que se espalham pelo nosso planeta.
Notas finais
1Disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br/mundo_25jan1965.htm, acessado em 03/04/2020.
2Disponíveis em, respectivamente, https://www.dailymotion.com/video/x53o4w7 e https://www.youtube.com/watch?v=SV5trPdEoLk&list=PLaGAbbh1M3ImfDDMROFdhvDQ5lzTzPhIl, acessados em 31/02/2020.
3Teatro de festivais fundado pelo próprio Richard Wagner em Bayreuth, Alemanha, para apresentações de seus próprios dramas musicais. David Large acrescenta que “em outras palavras, Bayreuth era um local em que Wagner poderia ser o rei, uma localidade que ele poderia pôr no mapa como a nova capital da arte alemã.” (Millington, 1995, 458)
4Cosima Francesca Gaetana Wagner (1837 – 1930) era filha do pianista, compositor e regente húngaro Franz Liszt e foi a segunda esposa de Wagner, com quem teve três filhos. Após a morte de Wagner, em 1883, Cosima assumiu a direção do Festival de Bayreuth, até 1914.
5Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=qbLr_QgWgG4, acessado em 02/04/2020.
6Disponível em https://www.cartacapital.com.br/cultura/como-hitler-pos-a-opera-a-servico-do-nazismo/, acessado em 25/03/2020.
7O desapontamento mais conhecido e divulgado foi em 1804, quando Napoleão se autoproclama imperador da França. A dedicatória a Napoleão Bonaparte colocada na partitura original da 3ª Sinfonia - Heroica (1803) foi excluída e a obra, foi publicada em 1804, dedicada ao amigo e protetor, príncipe Lobkowitz. Segundo Solomon (1987, 189), essa dedicatória se inclui em uma serie de dedicatórias desinteressadas e, por isso mesmo, muito mais significativas, já que, para Beethoven, elas eram fonte de patrocínio e renda. Além de destacar o desapontamento de Beethoven por Napoleão, Solomon acrescenta que o drama envolvido na dedicatória da Heroica pode ainda ser interpretado de duas formas. Por um lado, por ocasião de uma pretensa mudança para Paris, um desejo de romper com o sistema político e mecenato musical de Viena, e por outro, o abandono da identificação de Beethoven com a França e sua decisão de se considerar um cidadão vienense.
8O trecho foi extraído da carta de Beethoven a seus dois irmãos, conhecida com Testamento de Heiglnstadt, escrita em 6 de outubro de 1802. Na carta, Beethoven tenta explicar os momentos de sofrimento e angústia pela enfermidade que há muitos anos o acometia e que o deixaram solitário e com ideias suicidas.
9Partitura gráfica da Quinta/I em tempo real de sua execução. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=rRgXUFnfKIY, acessado em 02/04/2020.
10Disponível em: http://www.kunstderfuge.com/theory/malinowski.htm#Malinowski, acessado em 01/04/2020.
11Apesar de Kandinsky legendar a figura desta maneira, os pontos se referem a uma variação do tema principal da Sinfonia, referente aos quatro primeiros compassos da notação musical inserida logo acima deles. O segundo tema aparece a partir do quinto compasso da partitura da tela, e está representado pictoricamente pela linha na parte superior da composição.
Bibliografia
Kandinsky, Wassily. 1997. Ponto e linha sobre plano. Trad.: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes.
Millington, Barry, org. 1995. Wagner, um compêndio. Guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Trad.: Luiz Paulo Sampaio e Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Olna TV (1/7). 2009. Segunda Guerra Mundial/Mídia vai a Guerra. Programa Especial do Observatório da Imprensa lembrando os 70 anos da Segunda Guerra Mundial. Conduzido por Alberto Dines. Vídeo: 8:36. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=SjVf7qu6N5Q&feature=related. Acessado em 04/04/2020.
Olna TV (5/7). 2009. Segunda Guerra Mundial/Mídia vai a Guerra. Programa Especial do Observatório da Imprensa lembrando os 70 anos da Segunda Guerra Mundial. Conduzido por Alberto Dines. Vídeo: 7:09. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QdEUaxa6PKA, acessado em 04/04/2020.
Olna TV (7/7). 2009. Segunda Guerra Mundial/Mídia vai a Guerra. Programa Especial do Observatório da Imprensa lembrando os 70 anos da Segunda Guerra Mundial. Conduzido por Alberto Dines. Vídeo: 6:29. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=suprzhulKwg&t=2s Acessado em 15/03/2020.
Solomon, Maynard. 1987. Beethoven. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Trancheford, François-René, org. 1990. Guia da Música Sinfônica. Supervisão de Trad. E Revisão Tec.: Bruno Furnanetto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.