Abstract
This essay covers the relationship among images, in particular photography, and the literary text. The concept of alterity, in the relation between the subject who photograph, and the object, the “other”, which is photographed, is analyzed, as well as the iconoclasm that renders historically difficult the use of images and texts in combined midia. Most of existing studies concern the inclusion of photographs in literary texts, but some relate to photographs with short texts, like haikai, flash fiction and even epigrams. In the first case we study the works of W.G. Sebald that make extensive use of vernacular photographs around which the narratives are developed. In the second case we study the work of Bertolt Brecht, Kriegsfibel, where the author writes one epigram for each image of the WW II collected from the press, with the objective of awakening the critical reading of such images and the news that they refer to. In the end a description is made of the work of the author about Jorge Luis Borges. The work consists of an essay about the themes and obsessions of the Argentinian writer, four short stories inspired in his universe and photographs of Buenos Aires that refer indexically to his work and life.
Keywords: Photography, Literature, Images, Image-text, Intermediality.
Introdução
Este trabalho investiga o diálogo, em geral conflituoso, entre imagens (mais especificamente fotográficas) e texto, no âmbito da literatura e da própria fotografia.
W.J.T. Mitchell, um dos autores que mais a fundo tem estudado essa relação, aprofunda esse diálogo/conflito, quando distingue imagemtexto (imagetext), imagem-texto (image-text) e imagem/texto (image/text)1. Ele designa a imagem/texto como um gap, uma rachadura ou até uma ruptura na representação; imagemtexto diria respeito a trabalhos ou conceitos que combinam imagem e texto, como as obras apresentadas a seguir; e imagem-texto, com hífen, as relações entre o visual e o verbal.
Para ele, a relação imagem-texto não é apenas uma mera questão técnica, mas o locus do conflito, onde os antagonismos político, institucional e social se desenrolam na materialidade da representação.
No ensaio “Word and Image”, Mitchell introduz, de forma extremamente fecunda, o conceito da heterologia na relação imagem-texto:
A diferença palavra/imagem funciona como uma espécie de interruptor (relay) entre o que parece um julgamento “científico” sobre estética e semiótica, e julgamentos ideológicos profundamente enraizados sobre classe social, gênero e raça. Clichês tradicionais sobre a cultura visual (crianças são para ser vistas e não para ser ouvidas, mulheres são objeto de prazer visual para o olhar masculino, negros são imitadores naturais, as massas são facilmente enganadas e conduzidas pelas imagens) são baseadas em suposições tácitas da superioridade das palavras sobre a imagem visual. Mesmo nas mais básicas reflexões fenomenológicas sobre a intersubjetividade, o “eu” é construído como o sujeito que fala e vê, enquanto o “outro” como o objeto que se observa, mudo, uma imagem visual (Tiffany, 1989). São esses tipos de premissas sobre as relações entre as diferenças semióticas e sociais que fazem os desvios desses clichês parecerem transgressivos e originais: quando as mulheres falam, quando negros atingem altos níveis intelectuais, quando as massas encontram uma voz própria e articulada, eles estão rompendo com o regime que os relega a imagens visuais. Quando as imagens mudas começam a falar, quando as palavras parecem ficar visíveis como presenças materializadas, quando as fronteiras entre as mídias se dissolvem – ou, ao contrário, quando a mídia é “purificada” ou reduzida a uma essência única – a ordem “natural”, semiótica e estética, é estressada e se despedaça. A natureza dos sentidos, as mídias, as formas de arte são colocadas em questão: “natural” para quem, desde quando, e por quê?2
Daniel Tiffany, citado acima por Mitchell, diz no ensaio “Chryptesthesia: Visions of the Other”:
(...) numa cultura que coloca especial ênfase na superioridade moral da palavra, a imagem se resume a um muito pouco confiável alien; ela evoca uma mistura de fascinação e terror. A natureza contraditória da atitude ocidental com relação às imagens sugere que a imagem, visual ou mesmo verbal, tem sido historicamente um importante repositório da alteridade numa cultura que associa a veracidade a um conceito não visual do mundo.3
Ele mais adiante se coloca algumas questões sobre a propriedade da sua colocação: “Como é possível justificar que se estenda o discurso do “outro” para incluir o encontro de duas mídias ou dois sistemas de signos, entre a palavra e a imagem?”. Ele mesmo responde dizendo que,
(...) o discurso do outro, como ele é articulado por filósofos que vão de Husserl a Blanchot é não apenas relevante ao encontro entre palavra e imagem, ele é concebido retoricamente como um confronto entre as formas visual e verbal de atenção. Mais, o problema de entender o outro coincide com a natureza própria da retórica, em que algo passa a ser outro, que não é o que ele é (in which something becomes other than what it is). (...) a arte subverte a jornada em busca do conhecimento absoluto e é, portanto, o refúgio da alteridade. Desse ponto de vista, o discurso do “outro” é inseparavelmente ligado ao problema da estética. A questão sobre se o “outro” pode ser identificado com valores visuais ou verbais deve ser referida às tradicionais controvérsias sobre a natureza das palavras e das imagens na arte. (...) Muitas discussões filosóficas sobre a alteridade, como as oferecidas por Husserl, Sartre e Heidegger compartilham um poderoso bias contra a experiência visual e as próprias imagens. Ao mesmo tempo, esses modelos frequentemente expressam uma fascinação com certas concepções paradoxais da imagem como o locus do outro. O discurso heterológico, em geral, é então simultaneamente iconoclasta e idólatra, uma contradição que o situa firmemente na tradição da atitude ocidental com respeito às imagens.4
Arlindo Machado dedica um ensaio a essa aversão da cultura ocidental às imagens visuais, vistas como algo menor e não digno da mesma atenção e confiabilidade que a palavra escrita:
Não deixa de ser sintomático que a repulsa às imagens retorne com furor e intolerância em nosso tempo. Denominarei essa nova investida contra as imagens de o quarto iconoclasmo. Felizmente, ao menos por enquanto, ele se dá, tal como na sociedade grega antiga, apenas no plano do pensamento filosófico, ou seja, nesse terreno que poderíamos definir genericamente como sendo o do neoplatonismo. Hoje, a visão das massas populares reunidas ao redor dos aparelhos de televisão é considerada, por um número bastante expressivo de nossos intelectuais, tal qual aquela atribuída por Moisés ao povo judeu reunido em torno do bezerro de ouro: uma insuportável manifestação da iconofilia e da idolatria, um culto ao demônio, que se deve a qualquer preço combater.5
É nesse cenário adverso que alguns autores, sejam eles escritores, fotógrafos, ou artistas plásticos têm desenvolvido trabalhos que lidam com essa dualidade, integrando palavras e imagens de forma a alcançar um resultado que seja maior que simples adição de sentidos, algo que se beneficie de uma possível sinergia da combinação dessas mídias. Não é necessário salientar que se trata de um ato de coragem, que pressupõe um enfrentamento com a crítica de cada uma delas, embasadas que são no conceito modernista de “pureza” e de “alta cultura”, que cada uma quer preservar para si. Além dos iconoclasmos que assolam, de quando em quando, a cultura ocidental, os autores têm que enfrentar essa contaminação que rebaixa tanto a literatura quanto a fotografia à categoria de livros ilustrados, via de regra infantis, desprovendo-as até de uma análise crítica séria.
Em que pese essas dificuldades, Mitchell tem apontado para uma “virada visual” (pictorial turn), que podemos ver materializada nas obras de altíssima cultura de Bertold Brecht, de Walker Evans e James Agee, de Alexander Kluge, de W.G. Sebald, de Paulo Leminski, de Marília Garcia, de Anne Carson, de Umberto Eco, de Victor Burgin e muitos outros que ousaram transitar por esse espaço maldito, in between a literatura e as artes visuais.
I. Bertolt Brecht: Kriegsfibel
Apesar de dedicar uma obra6 praticamente inteira a esse “livro estranho e fascinante, muitas vezes esquecido nas biografias e bibliografias brechtianas”, Didi-Huberman começa chamando-o de “cartilha” – mesmo que para isso tenha escrito um capítulo inteiro sobre o que é cartilha –, já que Ruth Berlau , a assistente de Brecht, em uma espécie de prefácio, escrito na orelha do livro, esclarece em poucas palavras seu objetivo:
Por que apresentar justamente agora (ano de publicação 1955) essas imagens sombrias a nossos operários da indústria nacionalizada, a nossos camponeses cooperativos, a nossos intelectuais construtores, e por que enfim à nossa juventude que já desfruta das primeiras cotas da felicidade?
Alguém que esquece o passado não poderá lhe escapar. Este livro quer ensinar a arte de ler as imagens. O não iniciado decifra tão dificilmente uma imagem quanto um hieróglifo. A vasta ignorância das realidades sociais, que o capitalismo mantém com cuidado e brutalidade, transforma milhares de fotos publicadas nos [jornais] ilustrados em verdadeiras tábuas de hieróglifos, inacessíveis ao leitor que não duvida de nada.7
Fig. 1: Bertolt Brecht, Kriegsfibel
O próprio Brecht dissera em 1930 uma frase que exprimia a complexidade da legibilidade das imagens: “Mais que nunca, o simples fato de oferecer a realidade não diz algo sobre essa realidade. Uma fotografia das usinas Krupp ou da A.E.G. não ensina praticamente nada sobre essas instituições.” Um ano mais tarde, Walter Benjamin dialetizaria em sua “Pequena História da Fotografia”:
(...) as injunções contidas na autenticidade da fotografia. Nem sempre se conseguirá elucidá-las pela prática da reportagem, cujos clichês visuais não tem outro efeito senão suscitar por associações clichês linguísticos naquele que a olha. As imagens não nos dizem nada, nos mentem ou permanecem obscuras enquanto não nos damos ao trabalho de lê-las, isto é analisá-las, decompô-las, remontá-las, interpretá-las, distanciá-las dos clichês linguísticos que elas suscitam enquanto clichês visuais.8
Assim, nos seus anos de exílio durante a II Guerra, Brecht foi compondo com papel e cola um álbum de recortes de fotos publicadas na imprensa sueca, alemã ou norte-americana. Mas as imagens permaneceriam mudas, ou com suas legendas de jornal, exprimindo apenas o que interessava à respectiva mídia exprimir. Ele foi aos poucos acrescentando a essas fotos epigramas de quatro versos, no estilo clássico grego, com o objetivo de suscitar no leitor uma leitura crítica do que lhe diz a foto e a respectiva legenda, quando existente. Dessa forma, ele está ensinando o leitor a ler as imagens.
A forma do epigrama foi inventada na Grécia antiga, inicialmente como inscrições em túmulos, como algo que o morto, mudo, diria àquele que o observa. Era uma forma de desestabilizar a relação do “eu”, que olha e fala, com o “outro”, mudo e sem voz. Com o passar do tempo esses versos, concisos como um microconto ou um haicai, passaram a incorporar outros significados, incluindo uma veia satírica, ou irônica, ou erótica, ou de costumes. Seu acoplamento às imagens fotográficas que Brecht recolheu, recebeu dele mesmo o nome de fotoepigramas. Brecht os utilizou para dar voz às imagens que recortava e colava num álbum, uma voz que nos sacode criticamente, que diz eu não sou apenas o que você está vendo, olhe bem, há mais do que o que se vê no primeiro olhar.
Brecht muda constantemente ao longo do livro o sujeito que se dirige ao leitor, às vezes é o fotografado, às vezes uma terceira pessoa, como uma voz distante da consciência, às vezes alguém que interpela os personagens e também as legendas, que as ironiza e questiona. Nesse processo ele cria várias interrupções, descontinuidades, como no seu próprio teatro épico, que não permitem que o leitor leia o livro como uma narrativa, com o objetivo de desligar as articulações até o limite do possível, avançar aos saltos, criando assim intervalos que freiam a ilusão do leitor, e se destinam a sua tomada de posição crítica.9
Didi-Huberman explica de forma incomparável esse processo. Em uma das pranchas do álbum de Brecht, a de n. 47, vê-se um soldado americano, em primeiro plano, de costas, olhando para um soldado japonês a seus pés, que ele acabara de matar. A legenda da foto diz: “Soldado americano diante de um soldado japonês, morrendo, que ele acaba de ser obrigado a abater. O japonês, oculto atrás da barca, atirava sobre as tropas americanas”.
Fig. 2: Bertolt Brecht, Kriegsfibel
A essa legenda Brecht contrapõe seu epigrama:
Se havia avermelhado de sangue uma praia
Que não pertencia a nenhum dos dois
Se viram forçados, dizem, a se matar assim.
Que seja. Mas ainda se pergunta: por quem?10
Prossegue Didi-Huberman:
Com esse poema, eleva-se uma voz no deserto de morte que a imagem nos apresenta. Com ele levanta-se também uma dúvida terrível quanto à nossa maneira de olhar a imagem. Percebe-se que a própria prancha tornou-se o épico do encontro entre três espaços ou três temporalidades heterogêneas: o primeiro espaço-tempo é o do acontecimento que, num dia de 1943, pôs um japonês – observe-se que há dois outros cadáveres nessa bela praia do Pacífico – à mercê do soldado americano. O segundo é o da agência para a qual o fotógrafo trabalhava, e na qual o tratamento da imagem acompanha outra atividade de propaganda (sensível na indicação, inverificável, de que o americano só matou o japonês em legítima defesa: “o japonês atrás da barca atirava sobre tropas americanas”). O terceiro teatro de operações é o que Brecht organiza por conta própria: é o espaço negro da própria prancha, de onde surge, contrapondo-se à imagem, como nos cartões dos antigos filmes mudos, o texto do poema.
Uma dialética está assim em ação. Ela impede de ler o poema de Brecht independentemente da imagem que ele comenta, ou à qual ele parece mesmo “responder”. Reciprocamente essa dialética impede que ao ler a legenda “original”, possamos estar informados, de uma vez por todas, sobre o que a fotografia representa. Ela introduz, por esse fato, uma dúvida salutar sobre o estatuto da imagem sem que, por isso, seu valor documental seja contestado.11
Finalmente, Didi-Huberman conclui analisando o acoplamento do texto às imagens: “A maior estranheza – e poder – de seu ABC de la guerre (nome da edição francesa do livro) consiste em estender um traço de união, rápido como um raio, entre imagens de crime e textos de poesia, nessa maneira que têm as coisas visíveis, na fotografia, de repentinamente ‘tomar a palavra’ nos epigramas.”12
II. W.G. Sebald
É justamente esse acoplamento descrito acima, a respeito do Kriegsfibel, que elude inteiramente o leitor no caso de Sebald. Em todos os trabalhos deste autor, mas especialmente nos romances mais conhecidos, Os anéis de Saturno (1995), Austerlitz (2001) e Os Emigrantes (1992) – este último, mais precisamente, um conjunto de quatro narrativas –, Sebald introduz em seu texto diversas fotografias, chegando a cerca de oitenta em cada livro.
Um aspecto interessante de se introduzir aqui sobre o trabalho de Sebald é que, na contramão das correntes que consideram que o uso das imagens contamina e destrói na literatura sua característica de “alta cultura”, seus romances são extremamente importantes na literatura contemporânea e seu trabalho tem sido comparado ao do próprio Borges, Calvino, Nabokov e até mesmo ao de Kafka. Susan Sontag diz:
(...) será que a grandeza literária ainda é possível? (...) uma das poucas respostas para o leitor de língua inglesa é o trabalho de W.G. Sebald. (...) Quando Os Emigrantes apareceu em inglês, os elogios se transformaram em reverência e até espanto. Aqui estava um mestre do ofício de escrever, maduro, quase outonal, que tinha produzido um livro exótico e irrefutável. A linguagem era uma maravilha, delicada, densa, baseada na concretude das coisas (...) O que pareceu estranho e muito convincente foi a autoridade quase sobrenatural da sua voz: sua seriedade, sua sinuosidade, sua precisão, sua ausência de qualquer afetação ou ironia.13
Os romances de Sebald são tão originais porque são, ao mesmo tempo, ficção, documentário, história e diário de viagem. E a esse texto ele acrescenta fotos, tickets de trem, reproduções de pinturas. Segundo Sontag, é o que na teoria literária se chama o efeito de real. E ela complementa que “a ficção de Sebald, e suas ilustrações, levam o efeito de real a um extremo absolutamente pungente.”
Seu principal interesse era o tema da memória e da identidade, e a sua destruição pelo extermínio dos judeus no Holocausto, sobre o qual pairava um denso silêncio na Alemanha de pós guerra, onde e quando ele cresceu. Um de seus livros estampa Saturno em seu título (Os anéis de Saturno), planeta símbolo da melancolia que perpassa sua obra e personagens.
São emigrantes que por uma razão qualquer, guerra, racismo ou busca de melhores condições de vida, tentam voltar a uma terra que existe apenas em suas lembranças e suas fotografias. A saga do retorno só evidencia a ruptura entre o real e o desejo. As fotografias, em sua característica de testemunho do real, são aí a âncora do desejo que mantém vivo o tormento desses seres errantes.
Sebald, um alemão não judeu, se opunha ao que ele chamava de “Indústria do Holocausto”, argumentando que quem não havia vivido diretamente as atrocidades não poderia descrevê-las como muitos autores pretendiam fazer. Sua posição deve ser entendida no contexto da crítica de Adorno:
A arte deve lutar contra o esquecimento e o recalque, isto é, lutar igualmente contra a repetição e pela rememoração; mas não transformar a lembrança do horror em mais um produto cultural a ser consumido; evitar, portanto, que “o princípio de estetização artístico” torne Auschwitz representável, isto é, com sentido, assimilável, digerível, enfim, transforme Auschwitz em mercadoria que faz sucesso.14
Para essa crise de representação do que teria acontecido no horror daqueles anos, vivida pela literatura e pelas artes em geral, Sebald que escreve sobre a perda da memória e da identidade de judeus, achava que a representação devia se dar de uma forma oblíqua, criando uma forma literária nova para lidar com a questão. Isso foi o que ele fez, inventando essa forma que era em parte livro de memórias, em parte autobiografia e em parte guia de viagens.
O mesmo fenômeno ocorre na literatura argentina, a crise de representação dos horrores da ditadura militar, da tortura, dos desaparecidos, da execução de grávidas após o nascimento dos bebês adotados ilegalmente, no período que ficou conhecido como Guerra Suja.
O uso que Sebald faz das fotografias é que nos interessa. A questão central é que com tantas imagens pode-se perguntar se elas servem meramente para ilustrar o texto ou se sua função não seria de introduzir um elemento de factualidade no texto que é ficcional, dando assim mais veracidade à narrativa. Pode-se perguntar se existe alguma coisa na natureza da fotografia, no enquadramento espacial e temporal da imagem fotográfica, que tem uma relação com a morte e a memória que extrapola, e ultrapassa, o potencial simbólico da linguagem no texto em estão inseridas?
Sebald inclui fotografias em seu trabalho não apenas porque complementam ou contradizem dialeticamente a narrativa, mas porque elas podem dizer ao leitor o que o texto é incapaz de fazer.
Barthes em seu estudo da fotografia, A câmara clara, trata da fotografia em seu aspecto de referência para a memória e como agente da morte. Ele fala sobre a relação das fotografias com os mortos:
(...) aquilo que é fotografado é o alvo, o referente, uma espécie de pequeno simulacro de eidôlon (espírito) emitido pelo objeto, que poderia muito bem chamar-se o Spectrum da Fotografia, porque essa palavra conserva, através da raiz, uma relação com o “espetáculo” e acrescenta-lhe essa coisa um pouco terrível que existe em toda fotografia, o regresso do morto.15
No caso de Sebald, as imagens têm relação direta com o texto literário. São imagens que o autor obtinha das mais variadas fontes, de amigos, de suas próprias fotos, de fotos antigas encontradas em lojas de antiguidades. O uso das fotos é organicamente integrado ao texto, muitas descrições coincidem com as fotos, outras são fotos que têm apenas uma relação indexical com o texto. A inclusão das fotos não se dá porque elas sublinham a narrativa escrita mas porque elas apresentam ao leitor algo que o texto sozinho não consegue fazer, como no caso do inenarrável e do inefável.
Fig. 3: W.G. Sebald, Austerlitz
Poucas fotos têm legenda, algumas são razoavelmente definidas, outras são tão indefinidas e (aparentemente mal impressas) que chegam a irritar seus leitores. Entretanto, o próprio Sebald cuidava que as imagens fossem às vezes quase abstratas de tão ilegíveis, outras vezes extremamente claras. Ele sabia exatamente o que queria das imagens, na juventude havia sido um fotógrafo amador com certo envolvimento com a fotografia, tinha seu próprio laboratório e fazia suas próprias ampliações, portanto nada aqui é acidental.
Sebald emprega as fotografias no seu trabalho não pelo seu valor pictórico mas pelo seu caráter referencial, elas são como um certificado de presença (Barthes) de que algo ou alguém esteve realmente lá, servindo assim como testemunho indiscutível do passado.
Ele ainda coloca algumas fotos que são evidentemente não verdadeiras nos lembrando que estamos frente a uma ficção, mas também nos convidando a ver mais além da dicotomia ficção ou não ficção, em como essas imagens funcionam com o texto, e até contra o texto, para comunicar uma particular relação com o passado.
Fig. 4: W.G.Sebald, Os Imigrantes
Sobre essa relação Barthes comenta: (...) “atestando que o objeto fotografado é real, a fotografia também nos induz a pensar que ele está vivo (...) mas transladando a foto para o passado, nos induz a pensar que ele já está morto.”16
Mesmo vendo uma foto do presente, passa-se em nossa cabeça, como um relâmpago, a certeza da morte, de que aquele objeto morrerá e que essa foto será uma lembrança, portanto há na foto um trauma implícito, um luto pela perda que certamente virá. Assim a fotografia nos anuncia e reafirma, simultaneamente, a nossa própria morte, a nossa mortalidade.17
As personagens de Sebald esperam sempre muito do próprio ato de olhar, elas esperam que as imagens restaurem o passado de forma a ressuscitar conexões já há muito tempo perdidas. As imagens não são vistas apenas como lembranças ou conexões às memórias, mas como o próprio lugar onde elas se escondem.
O leitor sente o esforço de olhá-las demoradamente, até com lente de aumento, como se pudesse ver coisas deste passado que não recorda mais. Esse impulso é frustrado nas fotos dos livros de Sebald pela baixa resolução, como se ele estivesse negando esse acesso, lembrando talvez que este passado não pertence ao leitor, ou que este não tem autorização para acessá-lo.
Nisso se parece com Barthes que descreve em detalhe a foto de sua mãe e os sentimentos que ela evoca. Confessa acreditar que ampliando o pormenor em cascata, cada um mais ampliado que o anterior, chegaria à essência de sua mãe. Mas ele descobre que as ampliações sucessivas apenas revelam a materialidade da foto, os seus grãos, a trama do papel. Assim, ele tem que se contentar com o mesmo saber que já tinha antes, no primeiro relance em que viu a foto.
Sebald disse certa vez numa entrevista:
Eu sempre tive uma coisa com as fotografias antigas. As imagens mais antigas têm uma incrível capacidade de sugerir que existe outro mundo onde estão os que já partiram. Uma fotografia em preto e branco é um documento de uma ausência e é quase curiosamente metafísica. Eu sempre as amontoei. Eles representam um senso de alteridade. As figuras nas fotografias foram silenciadas, e elas olham fixamente para você como se estivessem pedindo uma chance de dizer alguma coisa.18
Nesse comentário ele nos remete aos ensaios de Mitchell e Tiffany, e usa seu ofício de escritor para devolver através do texto, com compaixão e empatia, a voz a esse “outro” emudecido cujo locus é a imagem visual.
III. Outros autores
Diversos outros autores têm trabalhado com imagens e texto. Pode-se citar o próprio Barthes em O império dos signos, Alexander Kluge em Air Raid, Umberto Eco com o romance A misteriosa chama da Rainha Loana, Anne Carson com o livro de poemas Nox, Marília Garcia com outro livro de poemas, Parque das Ruínas, John Berger e Jean Mohr em Um sétimo homem e Another way of telling, Walker Evans e James Agee em Let Us Now Praise Famous Men, Jorge Luis Borges e Maria Kodama em Atlas, Paulo Leminski e Jack Pires em 40 clics em Curitiba, Julio Cortázar em Último Round, Sophie Calle, Lewis Carroll, Art Spiegelman e muitos outros.
Fig. 5: Anne Carson, NOX
Trabalhos fotográficos que usam texto não têm despertado o mesmo interesse, pelo menos nos meios acadêmicos, que a literatura com imagens, sendo a sua produção crítica significativamente menor que essa última. Mesmo assim, há produções extremamente interessantes, como o próprio Kriegsfibel descrito acima, os trabalhos fotográficos de Duane Michals e de Jim Goldberg, as colagens fotográficas de Robert Frank, os trabalhos de Victor Burgin e John X. Berger que se situam na fronteira da fotografia e das artes plásticas.
Fig. 6: Robert Frank, Moving Out
O trabalho de Brecht, Kriegsfibel, suscitou o aparecimento de várias obras que usam o mesmo formato, com textos curtos e fotos apropriadas do próprio Brecht ou de outros meios de comunicação. É o caso, por exemplo, de Volker Braun com KriegsErklärung, que examina a guerra do Vietnam através do olhar brechtiano, de War Primer 2, de Broomberg & Chanarin (2011), um retrabalho de Kriegsfibel sobre a chamada Guerra ao Terror patrocinada pelo Governo Bush na esteira do atentado às torres do World Trade Center de Nova Iorque.
War Primer 3, de Lewis Bush, é, por sua vez, um retrabalho e uma crítica a War Primer 2, que teria sido uma produção problemática por usar o trabalho não pago de estagiários, negando-lhes também seu direito aos créditos de autoria. No espírito divertido do comentário de Brecht de “não começar com as boas coisas velhas, mas com as coisas novas e más”, Bush estrutura seu livro em torno do poema “A worker reads history” (que em português foi chamado de “Perguntas de um trabalhador que lê”), uma terceira encarnação de Kriegsfibel, “desenhado como um tributo, e em alguns casos um epitáfio, aos muitos anônimos que fazem rodar o mundo”.19
Fig. 7: Broomberg & Chanarin, War Primer 2
IV. “Escapando de Borges”
Se numa primeira abordagem o corpus desse tema pareceu limitado, numa segunda se mostrou extremamente amplo, com inúmeras contribuições de alta qualidade de críticos de literatura, história da arte e fotografia. Nelas se transita pela teoria da imagem, pela semiótica e pela teoria literária, o que situa a problemática da imagem-texto solidamente, se assim se pode dizer, no terreno instável da fronteira entre gêneros e mídias. Não é à toa que o livro de Victor Burgin sobre o tema se chama Between e ele aparece proeminentemente numa antologia chamada Other Than Itself.
Neste ensaio, transito entre as teorias literária e de fotografia, em busca de fundamentação crítica para minha poética de imagemtexto. Nesse sentido, produzi um livro sobre Jorge Luis Borges, intitulado Escapando de Borges, onde reúno alguns contos diretamente inspirados pela escritura borgeana, um ensaio sobre os principais temas e obsessões do escritor, e um conjunto de fotografias que se distribuem em pequenos blocos pelo texto. As fotos não têm legendas e não pretendem ilustrar o texto nem ser por ele explicadas. Essa advertência quanto à relação – ou não relação – imagem-texto é explicitada também em algumas obras acima citadas, como O império dos signos, Atlas e Let Us Now Praise Famous Men.
Fig. 8: Paulo Avelino S. Costa, Escapando de Borges
Em “Escapando de Borges” as imagens têm com o texto uma relação indexical, secreta, inconsciente, advinda da implicação do autor com seu objeto de trabalho, a obra do escritor argentino. Citando Benjamin em As imagens queimam, Didi-Huberman explica essa relação das imagens com o inconsciente do fotógrafo:
De onde vem esse elemento irredutível da fotografia? Menos que um “isso foi” compreendido como o puro noema da fotografia, que de uma conjunção notável (...) presente no instrumento fotográfico, todo ele construído entre um real e um inconsciente. O real está aí, diante da objetiva, mas o fotógrafo está implicado igualmente.20
Falando do trabalho fotográfico de Atget, Benjamin comenta sua capacidade de “tirar a maquiagem do real, marca fundamental da autenticidade” devido a “uma extraordinária faculdade de se fundir com as coisas”21. E o que significa se fundir com as coisas? Didi-Huberman explica: “Sem dúvida alguma estar no lugar. Ver, sabendo que se é olhado, afetado, que se está implicado. Mas não é só: ficar, permanecer, viver durante um tempo nesse olhar, nessa implicação. Fazer dessa duração uma experiência. Depois disso, fazer dessa experiência uma forma, desdobrar uma obra visual.”22
Fig. 9: Paulo Avelino S. Costa, Escapando de Borges
Para a conclusão do livro, passei uma semana em Buenos Aires, visitando os locais onde Borges viveu, seus amigos, seus cafés, sua biblioteca, locais que continham índices da sua passagem, escrevendo um diário e fotografando o que me mostrava o inconsciente. O resultado foi uma experiência rica, propiciada pela profunda imersão nos textos e no universo de Borges, fruto de dois anos de leituras concentradas, e uma vida de apreciação da sua obra, que resultaram na implicação de que fala Benjamin e Didi-Huberman, que pôde se desdobrar também na minha obra visual.
O acaso me fez mergulhar ainda mais nessa implicação. Nos dias que passei lá houve uma greve geral e uma grande manifestação peronista, de oposição ao governo Macri. Fui para o meio da massa, com uma lente de 21 mm, para estar mais dentro do evento. Alguém ouviu um tiro, e sem nem saber por quê, a multidão se agitou e houve um estouro da boiada. Fui apanhado em pleno ato de fotografar, de cócoras, tentando um ângulo que mostrasse a grandiosidade do protesto. Fui atropelado, caí no chão, fui pisoteado. Ao me ver um velho líder peronista me ajudou a levantar. Fiquei bem machucado, e meu sangue ficou, bem implicado, no asfalto da avenida de Mayo.
Notas Finais
1Mitchell. 1984. apud Linkis. 2019, 37.
2Mitchell. 1996.
3Tiffany. 1989. 209.
4Ibidem.
5Machado 2001, 15.
6Didi-Huberman. 2017. 35.
7Benjamin.1931. apud Didi-Huberman. 2017. 37.
8Didi-Huberman, 2017. 37.
9Ibidem, 59.
10Ibidem. 36.
11Ibidem. 39-40.
12Ibidem. 42.
13Sontag. 2000.
14Adorno apud Gagnebin. 2006. 79.
15Barthes. 1981. 23.
16Ibidem. 112.
17Harris 2001. 384.
18Sebald. Sem data. “The Questionable Business of Writing”, entrevista à Amazon.co.uk.
19Bush. 2015.
20Didi-Huberman, 2018, 51.
21Benjamin. 1931. Apud Didi-Huberman 2018. 49.
22Didi-Huberman, 2018, 49.
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