Abstract
The identity of Black people in Brazil in the film BLUESMAN is suggested through several feelings that are expressed througth filmic and metaphorical codes.
This study´s premisse is to decode the feelings we identified – Dream, Pride, and Hope. All them suggested by the use of certain plans, the scenario and/or props, the wardrobe, the body language of characters, as well as the text and the sountrack.
We intend to analize filmic and sign strategies throughout the film, and the way they act in the construction of a people´s brand.
Keywords: Identity, Body, Soundtrack, Scenery, Wardrobe.
Introdução
É nossa intenção neste artigo levar a cabo uma breve reflexão sobre o modo como as estratégias fílmicas funcionam na edificação de terminadas qualidades/sentimentos, que considerámos mais relevantes no decurso da narrativa do filme BLUESMAN. Como tal, selecionámos algumas cenas que nos pareceram mais evidentes na sugestão desses sentimentos (Sonho, Orgulho e Identidade). Partindo do pressuposto que as imagens têm uma leitura polissémica, a nossa atenção recaiu sobre significado do plano, e o modo como ele conduz o leitor, a banda sonora como ‘segunda’ leitura da imagem e, por último, o cenário, os adereços e o guarda-roupa como metalinguagem da composição dos diversos ‘quadros` em análise.
1. O Sonho materializado pelo plano em BLUESMAN
Um plano pode designar-se como um ‘momento’ do filme, participa num duplo sentido, elabora um relato e edifica um universo de ficção. E a cada plano, que se associa a outro plano, é possível termos a noção do tempo e do espaço, onde se desenrola a narrativa.
No entanto, no filme em estudo, observamos que não há uma preocupação aparente de marcar um tempo concreto. A mensagem é evocada por um conjunto de personagens, que se destacam por planos que se repetem. Por um lado, por uma opção estética, por outro, para que a sua tradução tivesse a mesma força.
BLUESMAN inicia-se com a imagem de um menino. Um corpo fragmentado pelo corte do limite do quadro, um grande plano: um rosto de uma criança. Ao espetador é transmitida a ideia que realizador não segue a câmara, mas ao invés disso é a câmara que o dirige, como se as ‘coisas’ e o seu ritmo a orientassem.
A seleção de um determinado plano é sinónimo de um simbolismo particular, que se aplica a cada imagem. A sua leitura faz-se a partir desse ‘segmento’, ou pela aplicação de adereços, como refere Morin: “(...) o plano consegue transferir uma carga simbólica como poder significativo de uma imagem. Nesta lógica, a sequência de planos forma uma cadeia que dá origem a uma narrativa, promovendo as suas singularidades, ao mesmo tempo imateriais e palpáveis” (1997).
Além do grande plano, o rosto remete o espetador de forma imediata para âmbito dos sentimentos e das emoções. Tal como mencionam Courtine e Haroche, o rosto encerra a expressão e as emoções, que o olhar retém.
Neste mundo de analogias, em cada corpo poderia separar-se os astros, das plantas ou dos animais, o rosto é centro: a partir dele todas as semelhanças irradiam; para ele, todas as similitudes tornam: nele todos os tipos de analogias familiares à ideia das assinaturas se descobrem. Porque o rosto é em primeiro lugar para o corpo o que o corpo é para o mundo (...). O rosto resume o corpo e, portanto, condensa, o mundo (...). O rosto é a parte prínceps da cabeça e a morada da alma (1998).
Simbolicamente, o rosto reforça a mensagem subjacente em todo o filme – a busca da essência do Homem Negro. Nesta cena, é o ‘veículo’ de fragilidade e ingenuidade. Caraterísticas que nos são comunicadas, pelo movimento do olhar e pela expressão.
Figura 1. O sonho pela expressão corporal: filme BLUESMAN
Figura 2. O sonho pelo uso do grande plano: filme BLUESMAN
O corpo é também um potenciador de significados, um elemento visual que possibilita estabelecer ligações com o espetador.
O corpo nu por sua vez, traduz ainda simplicidade e sensualidade, retirando qualquer hipótese de distração ao espetador. Deste modo, temos o recorte que guia nossa atenção. Centra-a na beleza dum corpo frágil, mas escultórico, que se torna presente e, de certo modo, dramático pelo uso do grande plano.
Sobre o tamanho ou comprimentos de plano Gardies (2007) indica que a dimensão do plano é referida como sendo o espaço em que o corpo humano se enquadra (idem). A este propósito Gilles Deleuze (cit in Gardies, idem), faz uma associação entre o grande plano ao que designa por “afecção”, afirmando que “A imagem-afecção é o grande plano, é o rosto”.
O sonho é nos facultado pela utilização grande plano nesta cena. O que é dito no discurso da personagem, dando lugar à linguagem da imagem, que se carateriza pelo facto de se conseguir expressar pela ligação dos seus elementos.
Além da imagem visual, temos a ‘imagem sonora’, materializada pelo depoimento. Ao dizer o seu nome, Caíque olha para a câmara, embora tudo o que responde é transmitido sem olhar para a câmara. A personagem vai-se apresentando (revela onde mora, seus gostos, etc) mas nunca enfrenta a objetiva. Parecendo que a timidez se sobrepõe a qualquer certeza. Ao ser confrontado com a questão - “o que você quer ser quando crescer?”. A personagem responde olhando para baixo – “eu, eu quero ser médico”, e de seguida olha para o interlocutor, parecendo aguardar que lhe garantam que esse sonho é algo alcançável.
2. O Orgulho refletido na letra da banda sonora em BLUESMAN
A banda sonora apresentada no filme BLUESMAN é um pot-pourri originado de três músicas que pertencem ao álbum homónimo – Bluesman, Preto e prata e Queima a minha pele – e trazem consigo significados de cunho subjetivo para as imagens mostradas. Desta forma, a letra da canção torna-se um elemento indissociável para a compreensão coesa da mensagem:
“A letra de uma canção pode funcionar como a voz da personagem. Ela é capaz de revelar seus pensamentos de um modo íntimo mais interessante do que uma simples cena falando. A letra de música também pode ser usada como a voz do narrador. Ela apresenta mais um mecanismo por meio do qual dosamos as informações sobre o personagem e o tema do filme.” (Van Sijll 2017).
Partindo desse princípio, compreende-se que banda sonora aqui apresentada constrói, contextualiza e afirma um importante discurso de orgulho identitário da população negra, por meio de diversas características pertencentes à composição.
2.1 Género, Ritmo e Letra
Ao assistir ao filme BLUESMAN, é pertinente dizer que o aspeto mais percetível pelo espetador – além das imagens – talvez seja o texto pertencente a letra das músicas. Antes disso contudo, é de suma importância salientar que a obra de Baco Exu do Blues discursa como um todo, de forma uníssona e harmônica, por isso o artista tece seu manifesto com signos coerentes, que reforçam os significados uns dos outros, a fim de potencializar a força na sua comunicação. Um exemplo disso são as escolhas de géneros musicais do cantor. Desde o início da sua carreira, Baco foi maioritariamente conhecido pelo seu vínculo com a cultura hip-hop, de forma mais específica o género rap, como demonstram os hits “Sulicídio” e “Te amo Disgraça”, trabalhos que possibilitaram sua notoriedade a nível nacional.
O hip-hop consiste num movimento cultural de origem norte-americana, oriundo das comunidades jamaicanas, latinas e afro-americanas. Afrika Bambataa, reconhecido como um dos principais percursores do movimento, estabeleceu termos técnicos e pilares essenciais que edificam esta corrente cultural:
O movimento hip-hop é um movimento que engloba três elementos – o breakdance; a arte do grafito; a música rap que se transformou em referencial na cultura da periferia. O rap, com seu discurso contestador, tornou-se um dos principais instrumentos utilizados pelos jovens negros da periferia para atingir seus objetivos e intervir nas relações sociais. É importante reconhecer que os jovens que participam deste movimento, falam das questões específicas de seu cotidiano e refletem suas insatisfações quanto à ordem social vigente (Silva 2002).
Através deste contexto, é possível compreender a escolha do hip-hop como principal género de expressão de Baco Exu do Blues. Não somente pela temática simbioticamente ligada ao povo negro, mas ainda pelas suas características poéticas na construção lírica. De acordo com o semioticista brasileiro Tatit (cit in Janot Júnior e Soares 2008):
Pode-se, a princípio, estruturar as diferentes formatações da canção popular brasileira, em três dicções diferenciadas: 1) a tematização, caracterizada por uma regularidade rítmica centrada nas estruturas dos refrões e de temas recorrentes, como as canções da Jovem Guarda e a música axé; 2) a passionalização, caracterizada por uma ampliação melódica centrada na extensão das notas musicais, exemplificada pelo samba-canção, sertanejo e “baladas” em geral e 3) figurativização, em que há uma valorização na entoação linguística da canção, valorizando os aspetos da fala presentes nessas peças musicais, tal como acontece no rap e no samba de breque.
Ainda que seja de suma importância reconhecer que as canções perpassam todos estes conceitos, não se restringem a um formato único, destaca-se o aspeto da figurativização, pelo qual Baco constrói o caminho das suas narrativas. No seu segundo álbum de estúdio, – BLUESMAN –, o artista adiciona mais um género ao acervo, o blues, sem deixar de lado o rap, criando assim uma construção singular, ou como ele próprio indica “Um disco de blues sem tocar blues”. Isto é possível por diversos mecanismos, como o sample da música “Mannish Boy” de Muddy Walters – considerado o pai do blues de Chicago – que inicia a música Bluesman e acaba por pavimentar o caminho para os versos quem vem a seguir:
“Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos
O primeiro ritmo que tornou pretos livres
Anel no dedo em cada um dos cinco
Vento na minha cara eu me sinto vivo
Através desta introdução, Baco contextualiza o espetador do marco histórico que o género musical em questão significou para o povo negro, de forma específica nos Estados Unidos. O crescimento deste campo cultural foi essencial no combate às políticas segregacionistas, além de discriminar, criavam e perpetuavam representações negativas de pessoas negras.
Some writers stress the singular importance of blues for Afro-American life in this century. I shall argue the issue even more fundamental – that blues are of singular significance for understanding the American historical experience, which has the tragic-comic characteristics of the music. Also, blues is essential for transcending what seems to be the nation’s limitations, specifically its unwillingness to include blacks and colored peoples as equal in its political and social system. (Daniels 1985)
Desta forma, o blues aqui é tratado como um instrumento de libertação do povo negro. A alforria vinda destes indivíduos para lutar pelos seus direitos e inserir-se de forma independente na sociedade em diversos aspetos, como por exemplo o económico.
A partir de agora considero tudo blues
O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
O funk é blues, o soul é blues
Eu sou Exu do Blues
Tudo que quando era preto era do demônio
E depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de blues
É isso, entenda
Jesus é blues
Falei mesmo”
Mais à frente, o cantor mostra ao espetador a sua visão criativa do que é o blues. Novamente, Baco explora a profundidade do género musical, não só como ritmo, mas também de forma concetual. Para ele, o blues é um elemento criativo tão forte, que foi capaz de quebrar barreiras preconceituosas, que foram estabelecidas por uma sociedade baseada na desigualdade social. Ao tomar para si signos como Jesus, o samba e o rock, Baco exige reconhecimento cultural e exalta a rica herança negra que foi roubada.
America is deeply rooted in Negro culture: its colloquialisms, its humor, its music. How ironic that the Negro, Who more than any other people can claim America’s culture as his own, is being persecuted and repressed, that the Negro, who has exemplified the humanities in his very existence, is being rewarded with inhumanity. (Sonny Rollins cit in Daniels 1985)
A banda sonora do filme então segue, e após o importante comparativo metafórico do corpo negro com a prata, Baco Exu do Blues introduz mais à frente aos versos da canção Preto e Prata:
“Nós vive pela prata tá-tá-tá tá-tá-tá
Nós mata pela prata tá-tá-tá tá-tá-tá
Protegemos a prata tá-tá-tá tá-tá-tá
Nós negros somos prata tá-tá-tá tá-tá-tá”
Ao recorrer a um artifício fonético que repete a sílaba final da palavra “prata”, Baco Exu do Blues reproduz um som que representa uma arma a disparar. Esta sugestão ao som do disparo representa um dos estereótipos mais cruéis imposto ao negro, o da violência. Associar um indivíduo a conceitos criminosos é um comportamento histórico, e está ligado ao racismo institucional, que de forma sumária pode ser compreendida como uma forma mascarada ou subtil do preconceito instaurado na operacionalização social. Desta forma, a sociedade internaliza a aversão à raça negra, constituindo um estado regido pela desigualdade racial, tal qual demonstra Souza (2001) no excerto a seguir:
A ideia é simples. Os aparatos institucionais de uma dada sociedade encontram-se a serviço dos grupos hegemônicos que os criam e fazem com que funcionem para a reprodução do sistema que lhe confere significado e existência. Alguém que esteja operando esse sistema poderá produzir resultados raciais injustamente diferenciados ainda que não tenha intenção de fazê-lo. (Souza 2001)
Além deste mecanismo, ao assumir que o corpo negro é prata, a letra em questão evidencia mais uma vez o racismo, e a luta constante do indivíduo negro para existir na sociedade. Ao procurar inspiração nesta metáfora, a música afirma ainda a valorização e a autoafirmação da população negra enquanto comunidade. Nestes versos o cantor afirma que vive e mata pelos seus companheiros de batalha e também os protege.
Ao seguir em frente, a banda sonora retorna para a música Bluesman e esta é tocada em sua totalidade:
“Eu amo o céu com a cor mais quente
Eu tenho a cor do meu povo, a cor da minha gente
Jovem Basquiat, meu mundo é diferente
Eu sou um dos poucos que não esconde o que sente
Eu choro sempre que eu lembro da gente
Lágrimas são só gotas, o corpo é enchente
Exagerado, eu tenho pressa do urgente
Eu não aceito sua prisão, minha loucura me entende
Baby, nem todo poeta é sensível
Eu sou o maior inimigo do impossível
Minha paixão é cativeiro, eu me cativo
O mundo é lento ou eu que sou hiperativo?
Me escuta, quem ‘cê acha que é ladrão
E puta?
Vai me dizer que isso não...
Não te lembra Cristo?
Me escuta, quem ‘cê acha que é ladrão e prostituta?
Vai me dizer que isso não te lembra Cristo?
Vai me dizer que isso não te lembra Cristo?
Eles querem um preto com arma pra cima
Num clipe na favela, gritando cocaína
Querem que nossa pele seja a pele do crime
Que Pantera Negra só seja um filme
Eu sou a porra do Mississipi em chama
Eles têm medo pra caralho de um próximo Obama
Racista, filha da puta, aqui ninguém te ama
Jerusalém que se foda, eu tô à procura de Wakanda”
Mais uma vez, no decorrer da música, Baco Exu do Blues explora temas de importância vital para o movimento antirracista. Além de expor a discussão do estereótipo de criminalidade associado ao negro, o cantor menciona a expetativa que a sociedade tem para com este indivíduo, esperando que estes se comportem de forma agressiva, a fim de reforçar preconceitos que constroem os pilares da desigualdade social. Em entrevista ao ator Lázaro Ramos, apresentador do programa “Espelho”, Baco diz:
“Eu precisei ser agressivo para ser notado, mas ser agressivo é o que todo mundo espera que eu seja, e automaticamente sou eu entrando no estereótipo, então tipo, até quando eu vou ter que voltar e regredir quatro casas e ser agressivo pra conseguir alguma coisa? Até quando eu vou ter que entrar no estereótipo para conseguir alguma coisa?”
Em BLUESMAN, o cantor utiliza agressividade de forma perspicaz, fora padrões identitários esperados, mas como ferramenta de força narrativa, para invocar de forma intensa ícones que carregam consigo um valor de representatividade extremo para a população negra – Basquiat, Pantera Negra, Mississipi em Chama e Obama. A música consegue conversar de forma direta com seu público-alvo: o indivíduo negro no Brasil, de forma mais específica, a geração atual de jovens que – representada pelo protagonista do filme – exige o seu espaço na sociedade e personifica o combate ao racismo, ao transformar seu próprio corpo e existência na luta em si.
Ainda na análise lírica destes versos, Baco Exu do Blues aborda temas imprescindíveis, como por exemplo a dor coletiva partilhada entre os negros, que advém de um processo de estrutura racial e se apresenta em vários formatos, tais como a desvalorização da história, da religião e cultura de matriz africana. Em outra declaração concedida durante a entrevista citada anteriormente, o cantor comenta:
“Você sabe que o mundo é racista, você sabe que as pessoas são racistas, mas você não sabe que você também foi condicionado a ser racista, mesmo sendo preto, tá ligado? Então é muito doido isso, porque você percebe que a religião te induz a ser racista, a escola te induz a ser racista.”
Sendo assim, entende-se que Baco Exu do Blues aborda temas que atuam como turning points na vida do indivíduo negro que procura ‘um lugar ao sol’ através da autoafirmação e exaltação de sua ancestralidade. Algo que Souza (2001) classifica como a tomada de consciência ideológica sobre si, que consiste em apoderar-se de um discurso inicialmente edificado para aprisionar o negro e coloca-lo em situação de disparidade, – tanto social, quanto política – e transformá-lo, para que garanta o respeito as diversidades e não explore este indivíduo em nenhuma instância.
Já no final do filme, a banda sonora mais uma vez altera-se e introduz ao espetador a música Queima Minha Pele:
“Amor, você é como o sol
Ilumina meu dia, mas queima minha pele”
Ao escolher estas frases para o fecho de BLUESMAN, Baco Exu do Blues fala sobre a dualidade de sentimentos como consequência da perceção que o negro adquire, ao entender-se como indivíduo numa sociedade racialmente estruturada. Através da justaposição de sentimentos divergentes, ao dizer que o sol ilumina e ao mesmo tempo queima, o cantor faz alusão à consciência que, apesar de necessária e fundamental, não deixa de ser extremamente dolorosa, já que este é um processo de violência identitário.
3. A Identidade através do cenário e guarda-roupa em BLUESMAN
O ponto de partida para a elaboração da estética dos vários cenários de diferentes momentos do filme, parece ter tido como objetivo enfatizar a presença do homem negro e sublinhar a sua identidade, com o intuito produzir um efeito de referência do universo psíquico dos espetadores.
As personagens são caraterizadas pelo cenário/e ou adereços onde se inserem, assim como pelo guarda-roupa. Importa referir que estes elementos são portadores de identidade, ou mesmo uma segunda ‘camada’ de leitura.
O espaço onde habitam as personagens (a textura e a colocação dos adereços), produz um determinado significado, existe para as conotar, se considerarmos que o “(...) sistema conotado é um sistema cujo plano de expressão é ele próprio consistido por um sistema de significação (...) Barthes (2007). Neste âmbito, a intervenção sobre o ambiente projeta gera a “arte visual do cinema” (Aumont e Marie, 2008), como um invólucro.
É ainda pertinente de salientar, que os cenários ao longo do filme, simbolizam o caráter e o estado emocional de cada personagem, assim como remetem para as fantasias e/ou emoções que os ligam.
Ao nos depararmos com as duas personagens que se encontram num campo (cenário exterior, tangível), percecionamos o lado ‘intangível’ do seu caráter.
Neste caso, o propósito deste cenário natural, parece-nos remeter para a pureza simplicidade do povo negro. As cores por sua vez, possibilitam o destaque acentuado dos dois corpos, que caminham entre um céu de azul celestial, e a terra semeada de erva seca e cor doirada.
Figura 4. A identidade de um povo evocada pelo cenário: filme BLUESMAN
Vemos, portanto, que a presença destes elementos (céu e terra), atuam como duas metáforas, se partirmos do pressuposto a metáfora se dá pela substituição do objeto por uma qualidade que se tenciona atribuir. Esta estratégia é bastante eficaz, já que independentemente do número de planos que o filme contém, pode ser assimilada de forma célere pela adição do discurso semiótico (Saborit, 1988:33). Além, de conter uma presença substancial de conotações que cada imagem, ou uma sucessão de imagens, mostra.
Neste caso, podemos associar à personagem mais velha qualidades como harmonia, estabilidade e sabedoria. Tendo em consideração que as cores quentes (amarelo, laranja e castanho por exemplo), conforme indica Chijiiwa “As you might expect, warm color shemes use warm colors like Orange, yellow (...)” transmitem essas sensações. Por seu lado, temos a personagem mais nova, com um porte atlético, movendo-se com ligeireza entre a vegetação, transmitindo-nos destreza e jovialidade.
Apesar da cor azul, ser considerada uma cor fria, neste contexto pode ser associada à luz celestial, adicionando outra leitura que podemos retirar do pormenor das nuvens ‘pintadas’ sobre o céu azul. Sobre este efeito Chijiiwa recorda-nos que “Light shades of any color look softh and ethereal, like cotton candy or fleecy clouds folating in the summer sky”.
Com efeito, a combinação das cores destes dois elementos, permite-nos afirmar que se tratam de dois componentes que assentam em dois apelos de carácter emocional.
Por um lado, temos o toque entre os dois (tangível) como se de um reconhecimento da identidade e das origens se tratasse e de respeito, por outro a leitura do cenário é conotativa do que não é explicito, nem diretamente observável.
Figura 5. A identidade de um povo evocada pelo guarda-roupa: filme BLUESMAN
A função do vestuário é tão pertinente como o cenário, ou adereço no filme para a caraterização das personagens. É através dele que a mensagem é comunicada, resultando noutro fator que nos permite interpretar. Vestir uma personagem é associar uma imagem, um estilo que se pretende produzir (clássico, informal ou requintado, por exemplo).
Acerca do papel do vestuário como processo de significação, Dorfles menciona o seguinte:
Se o vestuário e a moda em geral têm uma tão evidente missão clarificadora do status do indivíduo, no núcleo familiar, da sociedade, isso equivale desde logo a reconhecer-lhe uma qualidade semântica: e, portanto, a considerá-lo um elemento semiótico de primeira ordem. E a verdade é que o vestuário diz ou fala tanto mais do que os outros “sistemas de sinais” habitualmente tidos em consideração pela paralinguística, como os gestos das mãos, a mímica do rosto e outras atitudes corpóreas (1996).
Nesta cena do filme, o facto do guarda-roupa ser informal, indica um posicionamento e a relevância desse acessório para a ideia de identidade. Neste caso, identidade é comunicada pelo lado emocional sugerido pelo espaço, retirando assim qualquer protagonismo ao guarda-roupa. O mesmo é remetido para um plano secundário, já que as suas cores são atenuadas pela tonalidade do terreno.
A imagem seguinte dá início ao segundo ato da curta-metragem, que é interpretada como uma metáfora, já que esta é impossível de ser entendida de forma literal (Joly 2005). Nesta sequência, é possível ver a mesma personagem, presente na cena anterior, desta vez vestido a rigor, de forma luxuosa, rodeado de de joias de prata, tais como colares, anéis e brincos.
Figura 6. A personagem rodeada por objetos de prata: filme BLUESMAN
A partir deste momento, a personagem relaciona metaforicamente a cor da pele com a prata, refletindo sobre a subvalorização desta face ao ouro:
“A prata é um metal com poder de reflexão muito elevado, do latim Argentum, significa brilhante. Nossa pele é de prata, ela reflete luz. Um brilho tão intenso, que eu me pergunto, por que o ouro é tão querido e a prata subvalorizada? Alguns hão de responder que é pela prata ser encontrada com mais facilidade. Reflita. O Brasil tem uma população de negros maior que a de brancos. Temos menos valor por ser maioria? A ironia da maioria virar minoria. A prata é um metal puro, eu realmente não entendo essa necessidade da procura do ouro.”
Este discurso introduz uma sequência, em 3D, de um corpo sendo construído em prata, seguido de várias imagens de pessoas negras, conferindo um enobrecimento à pele negra ao compará-la com a prata.
Figura 7. Animação 3D corpo de prata: filme BLUESMAN
Figura 8. Associação da pele negra com a prata: filme BLUESMAN
Figura 9. Associação da pele negra com a prata: filme BLUESMAN
Tal como o cenário, o guarda-roupa pode servir igualmente para ironizar uma determinada ideia ou situação.
Figura 10. A identidade encenada: filme BLUESMAN
Todas as personagens vestem trajes dos ‘senhores’, tornando esta cena inusitada, já que se trata de um povo que foi explorado por esses mesmos ‘senhores’. Encena-se uma situação de falsa riqueza, com a presença de uma mesa farta decorada com toalha de renda, e o uso de acessórios geralmente associados a uma classe social superior. O ambiente é ‘povoado’ por plantas luxuriantes, vistosas, bem tratadas.
Figura 11. A identidade encenada: filme BLUESMAN
Neste retrato, temos um fundo neutro que permite o destaque dos traços da mulher negra. Enfeitada com adereços e com o seu corpo revelado pelo vestido branco. Mostra-se audaciosa, provocadora e segura, transmitindo a ideia convencional de beleza feminina, sugerindo mesmo uma fantasia feminina (Veríssimo, 2008). No entanto, observamos nesta imagem um corte com as características dos cânones. A transgressão reside no facto da personagem estar sem sutiã, pormenor impensável na época representada num contexto real, a isso junta-se a sua pose desafiadora.
Figura 12. A identidade encenada: filme BLUESMAN
Neste retrato, o vestuário e adereços servem também para caracterizar de forma irónica uma outra classe. Uma encenação igualmente mordaz, tendo em conta que os escravos não tinham acesso a serem retratados. Neste caso, ao contrário dos sets construídos para pessoas de um outro estrato social, o set é assumidamente improvisado; os tripés da iluminação da personagem estão visíveis e presentes no plano.
Esta ironia que o povo negro tem a capacidade de fazer à forma como era tratado – representada ao longo de todo o filme - imprime-lhe uma identidade quase estoica. Conforme expõe Muanis, o espetador tem consciência de estar a ver uma ficção, uma representação do que é lembrado, pelo modo caricato que algumas das personagens se apresentam ao longo do filme (2014).
Em síntese, em relação aos dois personagens que se encontram num campo, o cenário confere-lhes uma áurea metafórica (pelas cores do céu e da terra); nas figuras seguintes (uma família abastada ou uma mulher requintada, mas extremamente exuberantes) permite-nos afirmar que todas as cenas evocam uma certa alegoria sugerida pelo guarda-roupa e adereços nas cenas mencionadas.
Conclusão
Conclui-se, portanto, que a expressão corporal presente no filme BLUESMAN é essencial para a desconstrução de estereótipos criados sobre o indivíduo negro. Todos os momentos aqui analisados buscam desconstruir códigos imagéticos muito bem definidos na cultura brasileira. Ao resignificá-los, a produção contribui para a possibilidade de uma construção identitária mais sólida e livre de preconceitos.
Todos os lugares exibidos no filme são conectados pelo jovem que está correndo, que se torna o fio condutor da trama. A possibilidade gerar uma desconstrução por meio de elementos imagéticos que através da semiótica mostra-se eficiente e poderosa, já que é tangente o relacionamento do público-alvo para com a curta-metragem, que se sente representado e percebe um novo modo de percecionar a sua identidade.
As características de expressão corporal utilizadas na construção da narrativa estão na sua maioria baseadas no conceito alegórico da semiótica, já que recorrem a imagens e códigos conhecidos e previamente em funcionamento. No entanto, tais códigos são utilizados ao arrepio da expetativa do leitor. Contudo, não o frustra, já que a cada imagem desmontada, a cada preconceito desconstruído, o motivo de transformação das personagens passa a ser também o de quem está a assistir ao filme, criando um laço forte emocional entre o produto e o público.
Desta forma, os conceitos de identidade, cultura e raça são revolucionados e reforçados através dos recursos semióticos e cinematográficos.
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