Abstract
Metamorphoses is a project whose objective is to induce introspective thinking about the search for perfection through the image. It refers to the existence of metamorphic gaze when the reflection of the self reproduces itself in the mirror: there remains the manifest contemplation of the individual as a reflected element and simultaneously a second surreptitious image created by the projection of the self. It is evidenced the artistic interpretation of the relationship of the subject with his reflection conditioned by social and cultural experience.
Many artists use their own bodies to convey a message through image manipulation, and this is the focus of the Metamorphoses project. Therefore, this paper intends to present the results of an artistic project that establishes a symbiotic connection between photography and video art to show a self-representation which was distorted by the mirror in order to question the ideas of identity and perfection. The conception of metaphors is emphasized by the manipulation of sound and image and the constant presence of the mirror in photographic and video art creation wants to highlight the narcissus myth as a symbolic representation of the culture of the selfies.
Thus, the article wants to divulge the experience of a scientific and artistic project that manipulates photography and video to communicate distorted transformations which an altered look may originate and that resulted in an art exhibition that reflects the structure of contemporary society in which the appearance and construction of Ideal images seem to be the foundation of the postmodern.
Keywords: Photography, Video Art, Image Manipulation, Video.
Introdução
No contexto da sociedade atual, dominada pela imagem e pelo conceito de selfie ou autorretrato, experienciamos uma crescente inquietação do individuo em relação à sua própria identidade, excessivamente transposta em imagens num cenário de crescente digitalização imagética das relações humanas. O espelho converte-se no ecrã do smartphone e o reflexo nem sempre corresponde às expectativas ambicionadas. A convivência contemporânea induz à centralidade da imagem e a representação imagética assume cada vez maior importância. A concretização da comunicação entre pares é sobremaneira realizada através de imagens, ícones ou símbolos e a necessidade de ver ou mostrar, fotografar e gravar, torna-se premente. Destaca-se a conjuntura das selfies onde o autorretrato se impõe em diferentes âmbitos da vida dos indivíduos e o objeto espelho se torna imprescindível.
Esta constante preocupação com a imagem acaba por trazer consequências nem sempre positivas, dando-se cada vez mais importância à representação. Num espaço inundado de selfies e imagens perfeitas criam-se cópias deturpadas e idealizadas de estilos de vida ilusórios. Esbate-se, assim, a fronteira entre o real e o representacional e patrocina-se o culto da autorrepresentação estetizada e manipulada, determinada pela sociedade tecnológica de consumo e pela disseminação de ideais de beleza e perfeição. Esta padronização tem consequências nos indivíduos quer a nível do ‘eu’, quer a nível coletivo.
Neste sentido, Metamorfoses procura induzir um pensamento reflexivo acerca da procura pela perfeição através da imagem. Remete para a existência de olhares metamórficos reminiscentes quando o reflexo do ‘eu’ se reproduz no espelho: subsiste o olhar manifesto do individuo enquanto elemento refletido e, simultaneamente, uma segunda imagem sub-reptícia criada pela projeção do self. É a relação do sujeito com o seu reflexo condicionada pela vivência social e cultural e interpretada pela arte.
Muitos artistas usam o próprio corpo para transmitir uma mensagem através da manipulação da imagem e é este o foco do projeto que aqui se patenteia. Trata-se da apresentação dos resultados de um projeto de artes e multimédia que conjuga fotografia de rostos distorcidos pelo espelho e ampliação dessa representação através da videoarte. A criação de metáforas é enfatizada pela manipulação do som e da imagem e pela presença constante do objeto espelho na criação fotográfica e videográfica. Sobressai em especial o mito de Narciso como representação simbólica da cultura das selfies. Portanto, este texto apresenta os resultados de um projeto de carácter académico e artístico que manipula fotografia e vídeo para comunicar transformações distorcidas que um olhar alterado pode originar e que resultou numa obra expositiva que indaga a estrutura imagética da sociedade contemporânea em que a aparência e a construção da imagem ideal parecem ser o fundamento do pós-moderno.
Metodologicamente foi realizada uma análise teórico-critica e uma criação artística prática, articulando teoria e práxis. Destacámos, através da revisão do estado da arte, temas chave essenciais para erigir o projeto alicerçado no mito de Narciso e na ideia de metamorfose, bem como na simbologia do espelho e sua presença na arte e na videoarte. Partindo da intenção de incitar o pensamento reflexivo acerca da procura da perfeição através da imagem, o objetivo principal do projeto foi concretizar uma exposição artística composta por uma série de fotografias a preto e branco e por uma videoarte que refletem o tema. Ambas as linguagens funcionam como um todo, interligando-se, no sentido de se completarem, ou seja, o vídeo amplia as emoções reveladas nas fotografias. Deste modo, uma vez que o projeto procura explorar a relação entre o sujeito e o espelho, analisa como é que através da fotografia e da videoarte podemos transmitir uma autorrepresentação estética distorcida. Na fase da concretização foram trilhadas as etapas inerentes ao estádio da pré-produção, produção e pós-produção, seguidas da exposição artística. Em termos de reflexão final concluímos que o autorretrato é condicionado pela vivência social e cultural e é um fenómeno de banalização do ‘eu’ de forma a corresponder à hegemonia imagética contemporânea.
A componente estrutural do presente texto surge organizado em duas frações. A parte inicial apresenta a contextualização teórica e a segunda parte expõe como foi a idealização e implementação do projeto.
Como sugestão para investigação futura e, uma vez que as selfies ou autorretratos espelham e registam aspetos de uma vivência da contemporaneidade, propõe-se o desenvolvimento de um projeto cientifico-artístico junto de uma amostra simbólica de jovens estudantes de artes do ensino superior que procure indagar que perceção têm os jovens da importância dos autorretratos nas suas vidas e que culmine na concretização de uma exposição artística semelhante à aqui relatada, onde a matéria-prima a trabalhar seja a autorrepresentação que uma amostra mais pequena de estudantes faz de si mesma, em fotografia e videoarte.
Contextualização
Atualmente a sociedade não pode ser entendida sem a sua componente imagética. Hoje, mais do que nunca, comunica-se através de imagens e, neste cenário contemporâneo, o autorretrato emerge como representação preponderante da individualidade. Estabelece-se uma relação simbólica entre o individuo e os outros, tendo o espelho com mediador. Os sujeitos constroem as suas identidades no ciberespaço, sobretudo através das selfies e o lado real é metamorfoseado por ideais imagéticos. O que “era interno e privado, torna-se externo e público” (Lévy1996, 73) exigindo dos indivíduos a busca pela representação perfeita para enfatizar o estado de pertença social. A subjetividade reinventa-se e muitas vezes retrata-se da forma como ambiciona ser vista, levando a uma sociedade obcecada em conseguir corresponder à imagem que se cria (Eco, 2004). Segundo Joly (2007, 18) “para onde quer que nos viremos, existe a imagem” e, para além disso, “o polido, limpo, liso e impecável é o sinal de identidade da época atual” (Byung-Chul Han 2016, 11). Esta identidade é edificada tendo em conta influências recíprocas, sobretudo virtuais, e, de acordo com Hall (2006), é uma identidade que transita de um conceito unificado e estável, para se transformar numa identidade contraditória, não resolvida e fragmentária. Cada vez mais o sentido de si é mutável, construído e alterado em função de experiências, muitas delas auto representacionais. Por conseguinte, na pós-modernidade o sujeito “assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente” (Hall 2006,13).
Para além de persuadir e manipular, a imagem é também capaz de influenciar e mudar mentalidades (Tessarolo 2015) e há uma tendência para criar alguns estereótipos baseados na imagem que transmitimos para os outros e perante a sociedade. Neste cenário destacam-se as selfies ou imagens de si mesmo onde o culto do ‘eu’ ressalta. Emerge a necessidade de perfeição e a urgência de atualização e, no entender de Debord (1997, 14), o espetáculo já “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. A circulação excessiva de imagens no mundo atual leva a que a representação substitua as reações reais e fabricam-se representações de si como os outros pensam que o individuo é.
Assim, para além de existirem numerosas aplicações e programas que permitem manipular a imagem, emergem os influencers ou pessoas que se destacam e que partilham um estilo de vida que levam outras a segui-las e a tentar copiar o seu perfil.
Narciso é uma referência inevitável quando abordamos a questão da imagem e a formação de uma identidade que não existia e foi criada pelo próprio através do seu reflexo. No entanto, só ele é que conseguia ver a água como se de um corpo se tratasse (Ovídio 2007). “Narciso estava mortalmente ferido, prostrado, por um amor sem esperança dirigido a um ser que era, na verdade, apenas uma imagem de sua própria criação. Nas águas da fonte mergulhou finalmente tentando alcançar a criatura que via ali refletida, e assim a sua alma desceu ao reino de Plutão” (Lang 2003, 140). O conceito de narcisismo remete para o amor que o sujeito sente pela imagem de si próprio, vendo-se perfeito e bastando-se a si mesmo. O narcisismo ou, de acordo com Lowen (2017, 7), a negação do verdadeiro self, “descreve uma condição psicológica e uma condição cultural. No nível individual, indica uma perturbação da personalidade caracterizada por um investimento exagerado na imagem da própria pessoa à custa do self”.
Remontando à antiguidade, constatamos que já na Grécia antiga se tentava criar um ideal de belo, ou seja, a arte grega foi aperfeiçoando o que considerava ser o cânone de beleza. Com efeito, uma das caraterísticas singulares das obras na Grécia era o nível de detalhe presente, tal como a expressividade. Por exemplo, na escultura, procurava-se representar a figura com o máximo de detalhe, mas, que fosse, ao mesmo tempo, dinâmica, de forma a que todo o conjunto parecesse harmonioso (Eco 2004).
Fazendo uma ponte com a contemporaneidade podemos entender que o narcisismo resulta da obsessão pela procura do belo e revela a instabilidade do self. Para Oliveira (2015, 83) “o arquétipo narcísico está presente no cerne do autorretrato contemporâneo”, o que significa que é possível aproximar o modelo de Narciso do culto da autoimagem. O autor defende que se trata do “culto a uma autoimagem fantasiada em detrimento do próprio self” (Oliveira 2015, 87). Assim, tal como Narciso se apaixonou pela sua própria imagem refletida na água, os indivíduos perseguem atualmente estereótipos de beleza que, na maior parte das vezes, resultam de reflexos idealizados, ou seja, para alcançar a imagem ideal produzem-se metamorfoses e as “selfies, como máscaras do Eu, servem às mais diversas representações” (Oliveira 2015, 90).
A criação artística
O produto final ambicionado para o projeto consiste numa abordagem à representação imagética derivada do reflexo ao espelho. Ou seja, a criação artística foca-se na utilização do corpo, neste caso do rosto, para transmitir uma mensagem de busca de perfeição através da manipulação da imagem. Assim, Metamorfoses conjuga a fotografia que explora a imagem refletida pelo espelho e videoarte para motivar introspeção. Realce para as distorções ou metamorfoses do rosto refletido no objeto polido.
Todavia, antes de avançar para a descrição da etapa prática da conceção artística, é essencial expor a fase analítica de vários componentes que estruturam o projeto, o que permitiu consolidar conhecimentos de forma a conseguir prosseguir para a etapa seguinte. Vamos, portanto, deter-nos não só em exemplos de referência, como em noções como metamorfose do corpo ou espelhos na arte.
São variadas as linguagens artísticas que utilizam o corpo como ‘tela’ ou como matéria prima para desenvolver a criação artística. Trata-se do corpo do artista, ou partes desse mesmo corpo, como experiência estética ou como suporte da arte. Por outro lado, variadas criações recorrem à metamorfose como forma de comunicar ideias, intenções ou pontos de vista autorais.
No domínio da fotografia destacam-se alguns artistas que usam o próprio corpo para transmitir uma mensagem através da modificação da imagem. Cindy Sherman, por exemplo, desenvolve um trabalho transformando-se em várias personagens através de fotografias modificadas com efeitos e filtros para estabelecer uma critica social à cultura de massas e à obsessão com a imagem. Expõe Ribeiro (2008, 36) que é com a fotografia que Sherman “encontrará o suporte privilegiado para as suas criações” transpondo para as mesmas a “sua fascinação pela autotransformação”. Destaca, ainda, que “Sherman dispõe de suas personagens em situações nas quais elas parecem estar sendo olhadas, criando uma cadeia voyeurística na qual o que aparece na foto remete a um complemento – o olhar de alguém – que apenas se supõe” (Ribeiro 2008, 36).
No ramo da escultura estas metamorfoses também são visíveis. Hans Bellmer foi um escultor alemão que ficou conhecido pelas interpretações que fazia dos corpos. Na obra intitulada The Doll (1936) ele representa os corpos femininos de forma desfigurada e volumosa. Apesar de serem esculturas, também a fotografia é uma parte importante desta obra, pois Bellmer construía e fotografava as várias fases do processo. Ambas as linguagens fazem parte de um todo, interligando-se. The Doll é uma escultura em tamanho real parcialmente desmembrada que surge, portanto, retratada em fotografias a preto e branco, coloridas à mão, fruto de influências surrealistas. Observa Bottinelli (2004 online) que “with his Doll sculptures and photographs Bellmer appropriated and subverted the idea of the child’s toy”.
Ron Mueck trabalha igualmente a questão dos corpos de maneira diferente. Ele usa o hiper-realismo e o exagero nas proporções das suas esculturas, e “essa desproporção das figuras parece ser um artifício do artista” para instigar reflexão (Rodrigues 2016, 4).
De modo análogo, Charles Ray é um escultor que se apropria da imagem do corpo para criar figuras estranhas e controversas. O uso da figura humana é uma constante no seu trabalho.
Merece ainda destaque o trabalho de Matthew Barney, performer polémico que se move nas áreas da escultura, vídeo, desenho e fotografia e que usa diversas vezes o corpo como ferramenta em performances de arte. Muitas das suas obras centram-se na biologia e anatomia humana recebendo influências surrealistas, animalistas e pós-humanistas.
De referir também que os últimos anos têm assistido a metamorfoses corporais (body modification) onde o corpo surge como o elemento de experimentação ou a experiência de alteração no próprio corpo. Tatuagens ou piercings são exemplos bem conhecidos. Aliás, tatuagens e body piercing são atualmente formas estudadas de arte corporal. Observa Ferreira (2014, 406) que esta configuração de demarcação estilística “através da qual alguns jovens constroem e dão a (re)conhecer a sua identidade pessoal” implica uma “performance estética”.
Partindo do pressuposto que o autorretrato pode ser uma espécie de continuidade da imagem projetada num espelho, polida e clean ou deturpada e distorcida, interessa-nos abordar este elemento como um poderoso artificio utilizado na criação artística. Como explica Toscano (2014, 2) “o espelho confronta-nos com uma experiência notável: o encontro com um «misterioso irmão», uma autêntica cópia viva de nós mesmos”. E, se por um lado “o espelho perdeu o significado «místico» que tinha anteriormente, tornou-se inabitado, impenetrável e vazio”, por outro lado, “há inúmeras obras que dele fazem uso e que são fascinantes” (Toscano 2014, 138).
É o caso da obra O Casal Arnolfini (1934), pintura a óleo sobre madeira de Jan Van Eyck. Interessante nesta pintura é o pequeno espelho que se encontra numa parede ao fundo da composição, em posição central, e que mostra o reflexo do que está a acontecer quando o quadro está a ser pintado. O espelho tem uma forma convexa e através dele vemos a globalidade da cena. Podemos observar que, para além do casal, se encontra refletido no espelho o próprio pintor, em autorretrato, aquando da execução da obra. Neste caso, “o enunciatário toma contato com o enunciador de forma indireta por meio da projeção do artista em um pequeno espelho pendurado na parede” (Tomasi e Schwartzmann 2015, 211).
As meninas (1656), como é mundialmente conhecida, encontra-se atualmente no Museu do Prado em Espanha. Esta pintura do século XVII é do pintor Diego Velázquez. Este visionário de origem espanhola foi um dos grandes pintores do barroco, que ganhou destaque na corte, o que o fez ter o privilégio de ser a escolha do rei para fazer os retratos da mesma. Na parede ao fundo do quadro existe um espelho que nos chama a atenção. O reflexo do espelho introduz figuras na narrativa pictórica, o que restitui curiosidade ao que está fora de campo. Com efeito, argumenta Nabais (2007, 377) que as imagens do rei e da rainha de Espanha “surgem refletidas num espelho atrás da Infanta, o que introduz um elemento novo de perturbação, para o normal entendimento de toda a ação que se desenrola à nossa volta, produzindo um efeito invulgar ilusório da realidade”. Para além disso, nesta pintura o ato de criação do artista ressalta da obra, ou seja, “temos um tipo de assinatura pictórica evidenciada” pela projeção do próprio artista (Tomasi e Schwartzmann 2015, 210). Vénus ao Espelho, de 1648, é outra obra de Velázquez onde o espelho se evidencia. O espelho presente na pintura mostra o reflexo do rosto da figura feminina, só possível de ver desta maneira, uma vez que a personagem se encontra representada de costas. O seu olhar parece estar a fitar diretamente quem vê o quadro, o que, de alguma maneira, cria uma ligação (Martins, 2016).
O certo é que “os espelhos ocupam um espaço complexo e desempenham uma importante função em muitas produções culturais” (Sabbadini 2016, 258). Nos filmes, de acordo com Sabbadini (2016, 258), esta presença pode ter uma função ambígua, pois “oferece aos espectadores uma nova perspetiva sobre as imagens projetadas na tela, enquanto, ao mesmo tempo, as representam em um espaço emocional mais distante e, portanto, mais inacessível”.
Neste sentido, também no âmbito do cinema a presença do espelho se destaca em algumas narrativas notáveis. Alice Through the Looking Glass (Alice Através do Espelho, 2016), de James Bobin, conta a história de uma rapariga que tem o desejo de regressar ao país das maravilhas. Só através do espelho é que ela consegue voltar. Neste filme o espelho tem o poder de conseguir transportar, isto é, não atua de uma forma física, mas sim simbólica. Ou seja, o espelho é uma metáfora para um novo mundo, uma porta para escapar à realidade.
Em The Dreamers (Os sonhadores, 2003), de Bernardo Bertolucci, os espelhos oferecem um suporte narrativamente interessante para proporcionar reflexão acerca da relação entre as personagens e, ao apresentarem distorção - “os objetos que estão sendo refletidos nunca são idênticos às imagens refletidas” (Sabbadini 2016, 259) - tornam a interpretação da cena mais atenta. Os cinco espelhos incluídos numa cena de 8 minutos oferecem múltiplas perspetivas não só aos espetadores, como aos personagens envolvidos na cena, e indiciam uma situação delicada entre os protagonistas.
De modo identicamente interessante surgem espelhos em algumas criações escultóricas. A obra do escultor Anisk Kapoor é conhecida não só pelo seu engenho, como pela influência. Os reflexos polidos nas suas criações atraem e envolvem o público. A obra Sky mirror, constituída por um espelho côncavo, é um reflexo enorme do céu e do entorno geométrico do espaço, integrando-se harmoniosamente na paisagem onde a ideia do espelho é precisamente refletir o mundo, adquirindo, portanto, um sentido mais lato.
A fotografia é outro campo onde a utilização de espelhos proporciona trabalhos admiráveis. Helena Almeida, artista plástica portuguesa, utiliza o espelho para se fotografar a si mesma no intuito de criar uma autorrepresentação. Pintura Habitada é uma obra de 2017 onde faz uma autorrepresentação na qual marca a sua presença através de tinta azul. Jorge Molder é outro artista português que utilizou o espelho na fotografia para projetar o seu autorretrato. Podemos observar isso nas obras Points of Return de 1994 ou Serie Nov de 1999. A obra fotográfica Mão com Espelho, de 2010, de Daniel Blaufuks é uma criação na qual um espelho de dimensão diminuta ocupa a posição central na palma de uma mão, refletindo um rosto. A presença do espelho realça a simplicidade da imagem e dirige o olhar. Também Duane Michals desenvolveu vários trabalhos fotográficos onde recorre ao uso do espelho, como é o caso da criação fotográfica em seis imagens Dr Heisenberg’s Magic Mirror of Uncertainty que, para além de fotografia e espelho, inclui distorção.
Conscientes da importância deste percurso analítico-reflexivo para a maturidade da criação artística, munimo-nos de conceitos e influências basilares para desenvolver o projeto onde a fotografia e o vídeo ganham preponderância como linguagens artísticas. Porém, independentemente da técnica utilizada para a construção da obra, compreendemos que ao estudar conceções artísticas de referência onde o corpo surge como elemento de foco, nas suas variadas representações e metamorfoses, bem como o espelho, reunimos conhecimento estruturante fundamental para a conceção e desenvolvimento de Metamorfoses, projeto artístico que explanamos de seguida.
Metamorfoses
Estando delineado o projeto para concretizar, através de fotografia, retrato de rostos em composição de grande plano onde o elemento espelho assume preponderância para facilitar metamorfoses, a primeira etapa baseou-se em experiências fotográficas, usando o espelho, para determinar enquadramentos. De salientar que ficou estabelecido nesta fase de pré-produção que o elemento espelho é o único objeto comum em todas as imagens.
Como estava estabelecido previamente que uma criação de videoarte iria acompanhar a parte fotográfica, foi desenvolvido paralelamente o storyboard para o vídeo e iniciaram-se as primeiras experiências de filmagem, decorrentes do esboço fotográfico em teste. Procurando harmonizar as duas linguagens para fundar uma unidade expositiva, foram usadas no vídeo algumas das fotografias e um código estético semelhante com recurso ao uso de espelhos e distorções. Na parte fotográfica, com vista a acentuar a ideia de deformação e metamorfose, foram utilizados espelhos partidos para evidenciar este aspeto.
Todas as fotografias foram tiradas em estúdio para controlar a mise-en-scène e os elementos técnicos. Foi experimentado um background preto e vários espelhos de diversos formatos. É de realçar que todas as fotografias foram tiradas em modo manual, o que permitiu controlar a abertura do diafragma de maneira a garantir um bom contraste. Também foi feito uso da galeria de projetores existente no estúdio para proporcionar um melhor controlo da luz e da qualidade da mesma. Também foram gravados no estúdio pequenos excertos videográficos para acrescentar ao produto final. Todas as imagens (fotográficas e videográficas) foram realizadas com uma câmara Nikon D5600.
Após conseguidas as imagens finais, foram selecionadas as que iriam fazer parte da exposição e foram editadas no Photoshop CC 2015. A escolha deste software de edição deve-se à oferta de funcionalidades versáteis para o resultado que se pretendia obter. Foi decidido deste logo que as fotografias seriam a preto e branco.
Figura 1 – Duas das fotografias finais de Metamorfoses
No que diz respeito à componente vídeo, o pretendido era que esta criação acentuasse a obsessão pela busca da perfeição através do corpo e da imagem. Assim, a sequência inicia com um relógio que funciona como uma metáfora para o tempo que se leva a realizar alterações em relação à aparência e a pressão temporal da pós-modernidade.
Figura 2 – Frame relógio, 00:03
No processo de videoarte foram usados outros elementos para acentuar a ideia de metamorfose, como por exemplo, a maquilhagem, que é experimentada diversas vezes como um elemento facilitador da transformação da aparência. Para além disso, é nesta componente de videoarte que surge o autorretrato da autora. Com efeito, em alguns frames do vídeo, foi usado o reflexo do rosto da autora que se incorpora, deste modo, na sua criação. Apesar do rosto da autora não ser usado na parte fotográfica, foi integrado no complemento videográfico para experienciar o caráter de autorrepresentação e acentuar a noção de narcisismo ou autoadmiração, num excesso de contemplação por si próprio.
Figura 3 – Frames videoarte final Metamorfoses
Também o espelho faz parte da conceção de videoarte e é manipulado de várias maneiras, não só como objeto de autoadmiração, mas como simbolismo de transformação e reflexo da expressividade.
A constituinte de videoarte tem a duração de cerca de 1 minuto e foi editada recorrendo ao software de edição vídeo Adobe Premiere CC 2014. Não se trata de uma narrativa linear, mas excertos imagéticos, que no seu conjunto, procuram sublinhar a ideia de insatisfação com a imagem e tentativa de transformação. A lenda de Narciso foi uma referência de inspiração essencial para a criação videográfica. Por exemplo entre o segundo 00:39 e o 00:40 o espelho encontra-se no meio de flores e, de repente, começam a cair gotas de água no mesmo, ou seja, uma alegoria ao sofrimento de Eco por ter sido rejeitada, mas igualmente o sofrimento do indivíduo para atingir a imagem perfeita.
Ao longo do vídeo são aplicadas várias distorções não só para comunicar o tema da preocupação com a imagem, como para estabelecer uma ligação harmoniosa com a parte fotográfica.
Relativamente às cores do vídeo a cor original foi alterada para sépia através da função Tint com valores Map Black de 2d231c e em Map White de f4f4f4. No entanto, em alguns frames foi deixada a cor original para, deste modo, contrastar com momentos expressivos da sequência. O objetivo foi acentuar a força expressiva e a vertente estética. Na parte sonora foram selecionados efeitos sonoros em vez de música, sobretudo para enfatizar o estado de inquietação.
Após a criação fotográfica e videográfica foi dada atenção à parte da exibição do projeto. Este é composto por cinco fotografias em PVC, uma criação de videoarte e vários espelhos. Durante a montagem da exposição as cincos fotografias foram submersas numa fonte e num tanque que se encontram na Quinta da Cruz, um espaço cultural em Viseu.
Figura 4 – Fotografias no tanque, Quinta da Cruz
As imagens foram colocadas dentro de água, porque advindo a inspiração da lenda de Narciso, procurou-se recriar o momento em que ele olha para a água e vê o seu reflexo. Para completar esta ideia de reflexo, foram colocados alguns espelhos tanto na fonte como no tanque para proporcionar aos visitantes a experiência de também eles se verem refletidos. A ideia central de colocar as fotografias dentro de água derivou, principalmente, da necessidade de acentuar a metamorfose, pois as gotas ao caírem na água, os próprios reflexos e a agitação proporcionada pelo vento, incutiram realce à deformação da representação fotográfica.
A exibição do vídeo iniciou a sequência expositiva. Estando o projeto finalizado, procedeu-se à sua divulgação. Foram criados cartazes e panfletos distribuídos em papel e em modo digital, em especial nas redes sociais.
A exposição esteve patente na Quinta da Cruz, em Viseu, de 11 a 16 de junho de 2019.
Considerações finais
A exposição que resultou do projeto apresentado ao longo deste texto consistiu numa unidade artística composta por uma criação de videoarte completada por cinco fotografias a preto e branco cuja temática se foca na preocupação constante com a criação da imagem perfeita, o que implica, por vezes, metamorfoses ou transformações para corresponder a um ideal social e, assim, constrói-se uma imagem corporal através da cultura do belo. Tal como Narciso sucumbe ao encanto do seu reflexo, a sociedade contemporânea sacraliza o poder da imagem.
Neste sentido, as fotografias colocaram em foco cinco rostos refletidos num espelho, distorcidos pelo mesmo. Os estilhaços acentuam a interpretação metafórica e enfatizam a noção de transformação. Esta noção é realçada quando, no sítio expositivo, as imagens foram submersas no espaço cultural de uma quinta.
Neste projeto a autora é também elemento da enunciação, o que nos leva a encontrá-la em autorrepresentação na produção videográfica. Com efeito, a obra de videoarte que completa a unidade expositiva inicia a exibição ostentando a inquietação que as imagens procuram enfatizar. Emerge, para além de variadíssimas interpretações que a obra de arte proporciona à fruição, a influência do mito de Narciso focando o ponto de vista de uma autora imersa numa sociedade de imagens perfeitas e de autorretratos excessivamente manipulados. À semelhanças de outros artistas de várias áreas, o próprio corpo é apropriado como matéria-prima para estabelecer uma critica social a uma cultura obcecada com a representação do ‘eu’ através de imagens e selfies. O objeto espelho e as deformações pretendem exacerbar essa atenção. A autora assume um papel interventivo na obra, pois não só observa e fotografa, como é observada e representada, exibindo o seu autorretrato.
A concretização do projeto permitiu observar que na sociedade atual o autorretrato é uma forma de identificação do sujeito. Porém, esta representação do ‘eu’ é determinada pelo envolvimento social e cultural da contemporaneidade onde metamorfoses ocorrem para a selfie se adequar ao socialmente expectável.
É intento da autora expor novamente o projeto num outro espaço com alternativas para as fotografias ficarem submersas e, deste modo, ampliar a experiência de criação artística.
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