Original Leitmotiv for the short film Vivi Lobo e o Quarto Mágico (2019): A composing exercise

Leitmotiv original para o curta-metragem Vivi Lobo e o Quarto Mágico (2019): Um exercício composicional

Paloma Cristina Lima dos Santos

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil

Jorge Luiz Cunha Cardoso Filho

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil

Abstract

Lobinhas (2019) is an original composing by Paloma Cristina lasting two minutes made for the animation short-movie “Vivi Lobo e o quarto mágico” (2019) directed by Isabelle Santos. The theme music inspired by the character Vivi Lobo and her development in the narrative is an alternative soundtrack for the movie. The composition uses leitmotiv strategies to relate the song to the main character and then transposes it to Greek modes in order to transform the song accordingly to different emotional scales. Music is an important part of storytelling in which the feelings are narrated without visual information, so it is necessary create sound recognizing strategies like this project do. Building up a whole music soundtrack from a single leitmotiv and its variations in Greek modes gives for each different theme its own emotional character while keeps the same motif. The project shows the process of composing an original leitmotiv and its variations as well as the effects to the immersion of the viewer in the media narrative.

Keywords: Composition, Leitmotiv, Short-movie, Musical Modes, Musical soundtrack.

Introdução

A música está ligada ao cinema desde a invenção da sétima arte, de acordo com Carlos Pereira “As primeiras sessões públicas de cinema dos irmãos Lumière em 1895, foram acompanhadas pelo compositor e intérprete M. Marval num piano Gaveau” (2014, 11). Primeiramente, a música é utilizada como uma forma de encobrir os ruídos gerados pelos projetores da época e os longos períodos de silêncio. Com o tempo, a trilha passa a assumir funções específicas, como criação de climas, pontuação da ação, contraponto, contextualização histórica e geográfica, narração, tradução do universo psicológico das personagens. Ao mesmo tempo, a música assume funções estéticas, tingindo emocionalmente as ações com o seu caráter mais abstrato do que as imagens (Pereira, 2014, 11)1.

1. Fundamentação teórica

Para composição do leitmotiv Lobinhas, trilha musical alternativa do curta metragem Vivi Lobo e o Quarto Mágico (2019) de Isabelle Santos, além do aprofundamento no objeto fílmico foram estudados os conceitos de Leitmotiv e Modos Gregos, como maneira de compreender as possibilidades que cada elemento da trilha musical oferece à narrativa.

1.1 Leitmotiv

Leitmotiv é definido por Brown (1994, 98) como: “motivo musical, frequentemente breve, que ao longo de um drama musical (maneira que Wagner determinava suas óperas) é associado a um personagem, lugar, situação, objeto ou outros” (tradução própria)2. O leitmotiv é uma música de identificação responsável por causar no espectador o reconhecimento sonoro do que vai ser tratado na imagem. Por vezes é tão popular quanto o filme para o qual foi composto, este é o caso da canção-tema de Superman (1978) e do tema do personagem Darth Vader, The Imperial march, em Star Wars: The Empire Strikes Back (1977) ambas compostas por Jonh Willlians. A música pode servir para anteceder a entrada do personagem, causando expectativa, ou simplesmente marcar a presença dele em cena.

Além disso, o leitmotiv pode ser usado, transformado e até repartido e reunido com outra canção-tema durante a obra audiovisual para acompanhar o objeto com o qual se relaciona. A imutabilidade do leitmotiv é uma opção, não uma regra. Brown (1994, 99) exemplifica com o trabalho do compositor Erich Wolfgang Korngold para o filme The Sea Hawk (1940) de Michael Curtiz: o compositor emprega o que Brown nomeia como “estrutura de leitmotiv comprimido ou condensado”3, feito exclusivamente para a composição original do filme, da qual surge a maior parte do material musical da obra. O compositor faz mudanças de instrumentação e até reutilização de determinadas sequências melódicas de um leitmotiv em outras canções.

De acordo com a possibilidade de alteração do leitmotiv dentro da obra audiovisual, foram aplicados os modos gregos ou modos litúrgicos pela sua capacidade de alterar a música de acordo com Wisnik (2017, 238) para um caráter mais aberto ‘luminoso’ ou mais fechado ‘escuro’ a partir de intervalos pré-estabelecidos presentes em cada modo.

1. 2 Modos Gregos

Para explicar o que são modos gregos, devemos entender primeiramente o que são escalas. A escala é o conjunto mínimo de notas e a sucessão de intervalos particulares que se combinam para formar frases melódicas (Wisnik 2017, 73). O termo “escala” pode ser substituído por “modo” ou “gama”. As escalas são criadas a partir de um contexto cultural, como é o caso dos Modos Gregos, que tem sua origem na Grécia Antiga, mas sofreram alterações com o desenvolvimento da estrutura musical e alteração cultural. Os modos gregos Dórico, Mixolídio, Frígio e Lídio, a princípio eram constituídos apenas por quatro notas, diferentemente de hoje que utilizamos o dobro de notas, além disso, os gregos antigos consideravam as escalas no sentido descendente e não ascendente (Med 1996, 165). No século XVI foram acrescentados os modos Eólio e Jônico, somados aos já existentes, para formar o sistema que conhecemos hoje.

Para os gregos as escalas continham éthos, que de acordo com Wisnik (2017, 88) são o caráter de cada modo, sua característica de potencial não só mimético, mas de inspiração para a potencialidade ética e de ânimo do corpo e do espírito.

Entre os gregos, por exemplo, cada modo, evidenciando o seu caráter de verdadeiro território sonoro, era associado, pela sua denominação, a uma região ou povo. O modo dórico (formado pelos intervalos que vão de mi a mi), relacionado ao caráter viril dos lacedemonianos, era ligado tradicionalmente à solenidade (sonora e ética); o frígio (de ré a ré), de afinidades orientais, era ligado por sua vez ao dionisismo.4 (Wisnik, 2017, 87)

Compreender a função dos modos é a chave do experimento deste produto musical que procura alcançar o éthos que os gregos acreditavam conter em cada modo.

1.3 O filme

O filme “Vivi Lobo e o quarto mágico”, uma animação de treze minutos de duração, apresenta a personagem Vivi Lobo, seu cotidiano, seu quarto mágico e sua família, que consiste na sua mãe Lua, seu irmão Emilio e sua gata Matilda. O filme é narrado pela própria personagem Vivi que conta sua infância. A obra se inicia com imagens de acervo pessoal da diretora durante uma festa de aniversário, a narradora se apresenta e diz que vai contar a grande aventura de sua infância.

A trama se desenrola ao redor do bullying sofrido por Vivi e como uma série de mulheres passam pelo seu quarto mágico e a ajudam atravessar este momento e a se tornar uma escritora. A família Lobo acaba de mudar-se para uma nova casa, e essa não será a única mudança na sua vida. Na escola, Vivi sofre constante bullying por seu nome, sendo comparada a um lobo e a características como, suja, esquisita, malvada e traiçoeira. Vivi encontra no seu quarto um refúgio: a porta de um lugar mágico onde ela encontra mulheres incríveis que a inspiram a ser uma escritora. A primeira que surge é a pintora Frida Kahlo, e assim passam por este quarto a cantora Nina Simone, a futebolista Marta e a ativista Malala Yousafzai. Estes encontros só podem acontecer na primeira lua cheia do mês e o quarto muda suas características visuais a partir da personagem feminina que o ocupa. A última mulher que Vivi encontra no seu quarto mágico é a sua mãe em uma versão mais jovem, que lê para Vivi um trecho do livro Mulheres que correm com os lobos (1999) de Clarissa Pinkola Estes. Este trecho ressignifica para Vivi o sobrenome Lobo, lhe mostrando que existem diversas características positivas relacionadas ao animal e à própria Vivi, tais como percepção aguçada, espírito brincalhão, resistência, curiosidade, força interior, profunda intuição e velocidade. Vivi então percebe que ser Lobo é sobre liberdade, compreendendo que Lobos são “livres e fortes” e ela também é.

2. Processo composicional

A composição musical inspirada em Vivi Lobo deve compreender o deslocamento de uma menina que sai do lugar-comum imposto socialmente ao feminino. A obra se ampara em exemplos de mulheres reais, como a ativista paquistanesa Malala Youfsafzai; e personagens fictícios como Mônica da banda desenhada “A Turma da Mônica” e a própria mãe da personagem, para a compreensão de quem é Vivi e do lugar social que ela quer ocupar5.

2.1 Referências cinematográficas e musicais

Para realização da composição do leitmotiv “Lobinhas” foram desenvolvidos métodos de composição, pesquisa teórica, e uma escuta atenta de referências musicais, principalmente, trilhas musicais de diversos filmes de animação. Primeiro dividiu-se na categoria de filmes de animação com protagonistas femininas e/ou animações brasileiras, considerando que a obra que tinha como inspiração é brasileira com uma protagonista feminina. Não foram consideradas animações com princesas tradicionais, pois a narrativa não era próxima da obra. Optou-se por filmes mais recentes com novas propostas de construção de personagem feminina, tais como: Moana (2016) de Ron Clements e John Musker, Frozen (2013) de Chris Buck e Jennifer Lee, Brave (2012) de Brenda Chapman e Mark Andrews, The Breadwinner (2017) de Nora Twomey, e alguns que, apesar de terem mais de uma década, já apresentam protagonistas femininas desenvolvidas com riqueza e independência, como Spirited Away (2003) e Princess Mononoke (1997) ambos de Hayao Miyazaki. A música destes filmes muda de acordo com características como a localização geográfica, tempo histórico, cores predominantes, e os sentimentos que deveriam ser expostos aos espectadores.

Os filmes brasileiros foram O Menino e o mundo (2013) de Alê Abreu e Tito e os pássaros (2018) de Gustavo Steinberg, André Catoto e Gabriel Bitar. Ambas trilhas sonoras são obras de Gustavo Kurlat e Ruben Feffer. O Menino e o mundo conta uma história universal, mas faz opções instrumentais que nos coloca diretamente na América Latina, utilizando de percussão e sopro em boa parte da trilha. Há uma riqueza de sons agudos que combina diretamente com as cores vibrantes e diversas do filme, colocando visualmente uma teoria exposta por Yara Caznok (2015, 120) em que luzes intensas e sons agudos são relacionados com claridade, sendo esta a delicadeza da obra, e a sensação de doçura de ver o mundo pelos olhos de uma criança. Tito e os pássaros também endossa a teoria de Caznok, em um filme cujo tema é o medo em um futuro distópico. Visualmente a obra apresenta cores mais escuras e a narrativa é acompanhada por uma instrumentação orquestral bem mais grave sonoramente se comparado ao filme de Abreu. De acordo com Caznok, os sons graves são percebidos como escuros, então esta união reforça a tensão da narrativa. A orquestra clássica é um som tão conhecido que se encaixa perfeitamente no cenário desta cidade que pode estar em qualquer lugar do globo.

2.2 Lobinhas6

Como Vivi Lobo e o quarto mágico já possuía uma trilha musical, produzida por Bruno Vieira Brixel, foi necessária uma cópia do filme sem música. O áudio do filme foi remontado no software Adobe Première sem colocar a pista de música, e assim pode-se criar uma sonoridade própria para a obra sem influência da trilha musical original. A composição teve como base diversas sessões da obra Vivi Lobo e o quarto mágico, pois compor sem olhar a tela arriscaria não alcançar musicalmente o visual. A compositora assistia, compunha algo, tocava trechos reassistindo ao filme, fazia alterações ou mantinha o que ficou bom e assim foram diversas vezes até encontrar o resultado esperado.

Visualmente a animação traz cores leves, mas diversas, logo utilizou-se a teoria de Caznok e experimentou-se tons agudos do teclado, e também tocar no modo “teclado infantil”, som sintetizado bem agudo que recorda uma caixinha de música. Estes sons agudos traziam uma nostalgia infantil que a personagem apresenta ao contar sua própria história. Esta nostalgia remete facilmente para composições do músico Yann Tiersen que compôs a trilha sonora do Le fabuleux destin d’Amélie (2001) de Jean-Pierre Jeunet.

A música inicia com intervalos curtos para remeter à infância e aos “pequenos-grandes” passos que damos nessa fase. Por exemplo: Mi-sol (3°menor) e sol-lá (2° menor). Os intervalos são definidos por Med (1996, 60) como diferença de altura entre dois sons. Os intervalos se repetem e aos poucos ganham uma diferença maior: Ré-sol (4° justa) e Dó-sol (5° justa).

Figura 2- trecho retirado da partitura original Lobinhas (2019)

Compasso é a divisão de um trecho musical em série regulares de tempos (Med 1996,114). No caso, a escolha foi o compasso binário composto 6/8, constituído de dois tempos, sendo que em cada tempo tem-se o valor de três colcheias (♪) ou uma semínima pontuada (♩.).

A música ganha acompanhamento da clave de fá a partir do compasso sete, ressaltando e contrapondo com as mesmas notas da clave de sol apenas uma oitava abaixo do tema que vem sendo tocado. Posteriormente, entre os compassos treze e quinze, por meio da liquidação do motivo musical7 destaca-se no segundo tempo de cada compasso o isolamento de uma única nota que antecede o espectador para a próxima fase da música.

Figura 3- trecho retirado da partitura original Lobinhas (2019)

Todo esse trecho anterior remete a fase de mudanças e crescimento da personagem Vivi Lobo. Ela está em seu processo de infância, crescendo aos poucos com a ajuda de sua mãe e seu irmão. A escola nova é este grande passo para fora do lar, com novos desafios e questionamentos. A música passa assim entre os compassos dezesseis ao vinte e dois, a explorar uma oitava mais grave e ter acordes com intervalos maiores como Dó-si (7° maior) e Dó-dó (8° perfeita). As notas passam a ter uma duração maior e uma transição seca, sem ornamentos. A ideia é criar certo nível de tensão que corresponde a fase de bullying vivido pela personagem.

Figura 4- trecho retirado da partitura original Lobinhas (2019)

A terceira parte da partitura, entre os compassos vinte e três ao vinte e sete, exibe um pouco do que já foi apresentado no compasso dezesseis da música com a sequência descendente lá-sol-fá#. Ela traz de volta a um lugar de conforto espacial na música, ao mesmo tempo em que acompanha intervalos novos e menores que vão crescendo, mas sempre com esse apoio. Esse trecho corresponde à fase de descoberta do quarto mágico pela personagem Vivi. Os desafios continuam fora deste quarto, mas lá Vivi encontra o suporte de diversas mulheres que dão uma escada emocional para a personagem compreender o mundo e a si mesma.

Figura 5- trecho retirado da partitura original Lobinhas (2019)

A terceira parte é uma transição importante para o final, no qual retornamos por meio de uma hemíola (compassos 26,27)8, ao compasso vinte e oito a partir do intervalo Si-mi (4° justa) às sequências em colcheias. Este retorno traz a nota “Si” como um acréscimo vindo da segunda parte da música, e intervalos maiores (mi-lá, ré-lá) em uma sequência similar a da introdução da obra, fechando o ciclo com características novas para demostrar transformação, porém mantendo a essência da personagem. Tais características, antes ligadas a uma fase emocionalmente mais triste do filme, retornam ressignificadas e elaboradas para representar o amadurecimento de Vivi. Além disso, os apoios de uma oitava mais grave são retirados a partir do compasso vinte e três, inspirado pela cena final onde Vivi está em um cenário completamente branco e representa sua independência montando em seu próprio lobo.

Figura 6 - trecho retirado da partitura original Lobinhas (2019)

2.3 Transporte e modos

O primeiro passo consistiu em transpor a escala de Mi menor, tonalidade na qual a música foi composta originalmente, nos seis modos: Lídio, jônico, mixolídio, dórico, eólio e frígio. A escala de Mi menor é composta por: Mi-fá#-sol-lá-si-dó-ré-mi. Cada um dos modos tem uma sequência específica de intervalos para os quais deve-se readequar nesta escala. Sendo que, como dito na fundamentação teórica, os gregos acreditavam que cada modo teria um éthos, um caráter próprio. Wisnik (2017, 238) atribui caráter mais ‘luminoso’ ascendentemente aos modos mixolídio, jônico e lídio, e um caráter mais ‘escuro’ ascendentemente aos modos dórico, eólio e frígio.

Inicialmente o objetivo foi tornar a música mais “luminosa”, mais aberta, portanto aplicou-se os modos mixolídio, jônico e lídio. O mais adequado sonoramente foi o modo mixolídio que acrescentou os acidentes Dó# e Sol#, sendo aplicado em toda a partitura, mas com isso veio a dúvida se a alteração estaria na armadura de clave ou em acidentes, mantendo a armadura de clave original (Mi menor). Foi esclarecido em pesquisas prévias os conceitos de tonalidades e modos, ou seja, alterar a tonalidade da música por conta da nova armadura de clave, no caso Lá menor, não significa obrigatoriamente trazer um modo ligado àquela tonalidade. A partitura continua começando e terminando em Mi menor, e a melodia não tem nenhuma nota fora da escala de Mi menor. Sendo assim colocou-se a nova armadura de clave e nasceu a partitura “Lobinhas (modo Mi mixolídio) 9

As tentativas de tornar a música mais “escura” foram desafiadoras, pois o formato original da música já tinha um modo melancólico e nenhum dos outros modos parecia se encaixar na partitura inteira. O filme foi reassistido para saber onde colocar os modos já existentes e quais partes das músicas caberiam em cada cena, o que facilitava o processo de não ter que escolher um modo que se encaixasse em toda a canção, e assim sobrou uma cena específica: a cena do lobo entrando no quarto é uma metáfora da continuidade do que acontece após o bullying. Ela antecede o desabafo de Vivi em seu diário, e a inundação metafórica de seu quarto. É uma melancolia só de Vivi, no seu quarto “não-mágico”, espaço que até agora não tinha sua própria sonoridade. A música melancólica que acompanha esta cena, contém este sentimento que também pode ser acolhedor e transformador, fazendo parte do nosso amadurecimento, como nos ensina o filme Inside Out “Divertidamente” (2015) de Pete Docter. O espaço melancólico acolhe todos os desafios que a personagem enfrenta, mas nele também se encontra a porta para o espaço de alivio, esperança e empoderamento da narrativa, o quarto mágico. O modo dórico não funcionou sonoramente, e o modo jônico trouxe um suspense à canção que não parecia se encaixar. O modo lídio como, já era de se esperar, trazia mais claridade, até que o modo frígio10 trouxe uma melancolia diferente, profunda, mas ao mesmo tempo com acidentes que também poderíamos encontrar no modo Lídio, mais claro. Desta maneira o modo trouxe um pouco da profundidade dessa sensação de que a vida pode ser alegre e triste ao mesmo tempo.

Figura 7-Trecho retirado da partitura Lobinhas (2019) com alterações para o modo frígio nos compassos de número dois e três

É necessário salientar que o modo por si só não determina a sonoridade dessas versões, há mudanças de andamento, instrumentação, e outras alterações feitas em favor da imagem do filme que serão descritas no próximo tópico. Ainda assim o modo é importante, e trabalhar com ele abre um leque de possibilidades e variações que foram de extrema importância para compreender as potencialidades que uma única música pode oferecer, seja em favor do audiovisual ou de outros trabalhos.

2.4 Cada cena, cada som

Ao produzir um filme, existe um trabalho de pré-produção conhecido como desenho de som. O desenho de som é um projeto no qual são determinados quais e que tipos de som estarão em cada cena. Funciona como um guia, um roteiro não só para a equipe técnica em set, mas também para o editor de áudio. A música não é diferente, afinal há diversas possibilidades de aplicação de uma música em um filme para além de reproduzi-la integralmente. Considerando que este projeto tem como foco a trilha musical alternativa de um curta-metragem, optou-se por não utilizar a música integralmente, exceto nos créditos. A composição tem diversos pontos que se encaixam para mais de uma cena e considerando que são duas versões em modos diferentes, sendo trecho ou obra completa, não seria interessante desgastar o espectador com longas reproduções do mesmo leitmotiv.

Na decupagem11 do filme, cena por cena, foram selecionados qual trecho da música em determinado modo se encaixa melhor em cada momento. A primeira cena (00:00:13-00:00:49) é uma introdução da personagem olhando o seu passado, ela assiste a partir do presente o início da sua infância, então a trilha inicia-se também pelo fim escolhendo um trecho da parte final da partitura, compassos (29 à 35) em Mi Mixolídio com instrumentação em vibrafone e Marimba. Apesar de visualmente o espectador ver uma criança, ele é introduzido por uma versão adulta da personagem, então mistura-se o elemento infantil com um trecho que representa o amadurecimento, o final do leitmotiv.

A segunda cena, na qual há presença de música (00:01:10-00:01:28), é o início da história de Vivi apresentando sua casa e sua família, portanto utiliza-se a primeira parte da partitura, compassos (07 à 16) em modo Mi Mixolídio, porém com uma instrumentação de piano regular diferindo da introdução do filme.

A terceira cena (00:02:49-00:04:11) se passa na escola, após Vivi sofrer bullying por parte de seus colegas de sala. A cena contempla todo o trajeto de volta da escola e chegada em casa. Para esta parte opta-se por tocar a música utilizando pausas e trechos distintos. Ela inicia-se com a introdução da partitura (compassos 01 a 06) e depois se completa com a segunda parte da partitura (compassos 16 a 23). A partitura aqui apresentada é a original de Mi menor, modo eólio, com a instrumentação de piano.

A quarta cena (00:05:56-00:06:12) é uma exibição em arquivos de vídeo das diversas mulheres que Vivi conhece em seu quarto mágico. Para esse novo lugar de conforto é retomado a introdução da partitura em modo Mi Mixolídio utilizando os compassos (07-12/16), com instrumentação de piano.

A quinta cena aqui nomeada “Lobo solitário” (00:06:41-00:06:58) é acompanhada pela repetição do compasso 03 na partitura onde esse trecho está em modo Mi Frígio, instrumentação piano. A repetição representa o fato recorrente de melancolia em Vivi por se sentir isolada das outras crianças, e o compasso único é esta situação de solidão da personagem.

A sexta e penúltima cena (00:08:49-00:09:03) é o encontro de Vivi com a sua mãe fora do quarto mágico, o fim do ciclo de encontros dentro do filme e de uma jornada para a personagem. Para este trecho foi escolhida a terceira parte da partitura no modo Mi Mixolídio que compreende os compassos (23 a 27), com instrumentação em piano. Esta terceira parte funciona como um pré-final, visto que o fim da jornada é sempre o início de uma nova. Na última cena (00:09:52) Vivi recomeça sua jornada liderando uma alcateia sob o seu lobo branco. Para o final, que também pode ser lido como um recomeço, há o acompanhamento de toda a partitura “Lobinhas” em Modo Mi Mixolídio com instrumentação vibrafone e Marimba. A música continua tocando durante os créditos do filme, sendo depois substituída após seu final, pela versão original em modo Mí Eólio com instrumentação em piano.

2.5 Gravação

Foi utilizado um teclado Yamaha PSR-100 no processo de composição e por questões técnicas o transporte dos modos foi feito em uma Yamaha PSR-160. A sonoridade dos dois diferia e o PSR-160 não tinha o efeito “Toy Piano”, a partir daí buscou-se por efeitos substitutos da sonoridade com a qual se estava habituado. A sonoridade também foi alterada na gravação por ter que utilizar um teclado controlador Axiom 61 M-Audio, que tinha teclas semi-pesadas, com as quais a compositora e intérprete não tinha hábito. A compositora Paloma Cristina e o engenheiro de áudio do estúdio de som da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Saulo Leal acrescentaram ao efeito Vibrafone, o efeito Marimba, para dar mais corpo a música. Mixaram alterando o volume de algumas notas e descobriram juntos como gravar música para um filme. Não era só uma questão de partitura, mas especialmente da imagem, então o tempo, a duração das notas, tudo mudava de acordo com a imagem, sendo a partitura um guia para o que tocar, e menos para como tocar.

O processo de gravação teve o grau de intuição e sensibilidade que também esteve presente no processo de composição. Por mais que a compositora tivesse diversas fontes teóricas musicais, a subjetividade do ouvido de cada um acaba sendo a decisão final. Algumas sonoridades se encaixam perfeitamente em uma situação e em outras não, há pessoas que gostam de uma música, outras simplesmente não gostam, não existe receita perfeita. Apesar de ouvir todos os conselhos e opiniões, o ouvido e a subjetividade da compositora foram os parâmetros de escolha de quais mudanças acatar. O leitmotiv e todas suas versões tornaram-se então parte da obra Vivi Lobo e o quarto mágico colaborando de uma maneira empática12, no seu lugar de música de fosso13 com a trilha sonora do filme.

Conclusão

O processo de composição da partitura “Lobinhas” significa aceitar o desejo de estar no entre-lugar do cinema e da música, e da música com diversas outras artes. O caminho de vir da formação em cinema e audiovisual e se aventurar na área de composição musical, não trouxe benefícios de uma maneira teórica e prática para a composição e execução do produto, porém deu habilidades de leitura da imagem, intimidade com o ritmo fílmico e um olhar privilegiado sobre como esta música afinal se debruça. Não se pode afirmar os valores das potências de quem compõe para filme partindo de uma formação musical, ou de uma formação audiovisual, mas definitivamente nada se anula ou impossibilita o processo, trazendo cada um suas dificuldades e seus benefícios.

Disponibilizar a composição para apreciação pública é uma forma de ouvir sobre o produto e, através das leituras dos outros, refletir sobre ideias, construções e reflexões. A música assim como este projeto pretende mostrar, é um veículo que se transforma, seja por modos, instrumentação ou escalas, e talvez também por esta mobilidade é que ela também transforma o universo a sua volta. Portanto este trabalho não se finda, estando aberto a mudanças, crescimento e novas oportunidades de ser apreciado em variadas formas.

Notas finais

1Para aprofundamento sobre as questões históricas da inserção da música na projeção cinematográfica sugiro: London (1970), Adorno, Eisler (1994) e Gorbman (1987).

2“A musical motif, often quiet brief, that over the course of a music drama (as Wagner called his operas) comes to be associated with a character, a place, a situation, a thing or what have you”.

3“compressed or condensed leitmotif structure” Brown, 1994, 99.

4Estes é a definição como aparece na Política da Aristóteles. Um teórico do fim do século IX, autor de Alia Musica, acreditando que os oito “tons de transposição” gregos citados por Boécio eram os oito tons do cantochão, que ele conhecia, atribuiu a estes os nomes gregos numa nova ordem, em que o modo de ré aparece como dórico, o de mi como frígio, o de fá como lídio e o de sol como mixolídio que passou a ser utilizada a partir de então. (Wisnik, 2017, 231-232).

5Para aprofundamento sobre o processo de criação da personagem Vivi Lobo e do próprio filme consultar Santos (2017) e as referências deste trabalho Beauvoir (2015, 2016), Estes (1999) e Woolf (2014).

6Disponível em https://soundcloud.com/user-279994119/lobinhas. Partitura disponível em https://drive.google.com/drive/folders/1XIL7QMwE9H3Ysu-nlgqp2BrcaVuR258S

7Para aprofundamento sobre liquidação motívica, consultar em Schoenberg (1996).

8Se refere a figuras rítmicas que incitam outra fórmula de compasso (definição própria). Para mais exemplos consultar Apel (1950).

9Áudio disponível em https://soundcloud.com/user279994119/lobinhas-mixolidio. Partitura disponível em https://drive.google.com/drive/folders/1XIL7QMwE9H3Ysu-nlgqp2BrcaVuR258S

10Disponível em https://soundcloud.com/user-279994119/lobinhastrecho-frigio.

11Designa de modo mais metafórico a estrutura do filme tal como seguimento de planos e de sequências (Aumont & Marie, 2003, 71).

12Música que exprime claramente sua participação na cena, dando ritmo, tom em função dos códigos culturais da tristeza, da alegria, da emoção e do movimento, ver Chion (2011, 14-15).

13A música de fosso acompanha a imagem a partir de uma posição off, fora do local e do tempo da ação, ver Chion (2011, 67).

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Filmografia

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Frozen. 2013. De Chris Bock e Jennifer Lee. Estados Unidos.

Inside Out. 2015. De Pete Docter. Estados Unidos.

Le Fabuleux Destin d’Amelie Poulain. 2001. De Jean-Pierre Jeunet. França, Alemanha.

Moana. 2016. De Ron Clements e Jonh Musker. Estados Unidos.

O Menino e o mundo. 2013. De Alê Abreu. Brasil.

Princess Mononoke. 1997. De Hayao Myiasaki. Japão.

Spirited Away. 2001. De Hayao Myiasaki. Japão.

Star Wars: The Empire Strikes Back. 1977. De Irvin Kershner. Estados Unidos.

Superman. 1978. De Richard Donner. Estados Unidos, Reino Unido.

The Breadwinner. 2017. De Nora Twoney. Canadá, Irlanda, Luxemburgo.

Tito e os Pássaros. 2018. André Couto, Gabriel Bitar, Gustavo Steinberg. Brasil.