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Arte interativa: quem é o autor e onde está o espectador?

António Cardoso

CHAIA, Universidade de Évora, Portugal

Abstract

This article examines how the emergence of interactive art brought about the necessity of re-positioning the traditional role of the spectator and led to the re-formulation of the notion of authorship. The non-linear structure of interactive artworks empowers the spectator with the (apparent) control of its narrative and creates a relational space filled with an input-output dynamic. It is suggested that this elevates the spectator to the realm of co-authorship of the work of art that he/she is interacting with, because the specificity of each interaction generates symbolic meanings that the original author cannot anticipate.
It is also argued that the input required from the spectator to interact with the artwork could be compared to a theatrical performance. Thus, an analogy between the spectator-in-action of an interactive artwork and the figure of an actor is established. This brings us to the question concluding the article: as the reception of interactive art implies an action from its spectator, the compatibility between action and contemplation is questioned.
Finally, the article concludes that the corpus of an interactive artwork has to include the spectator that acts and creates the input needed for the interaction to be established. Therefore, only from the point of view of an external observer one can gain access to its global dimension, that is, as meta-spectators.

Keywords: Interaction, Author, Spectator, Reception, Meta-spectator

1

Na década de 1960, muitos artistas e teóricos, sobretudo os de simpatia marxista, criticavam o estado de alienação dos indivíduos afetados pela crescente cultura consumista que se fazia sentir. Esse consumismo era também iconográfico, pois a possibilidade da reprodução técnica da imagem facilitou a cópia e re-cópia da imagem até à sua exaustão, tornando o olhar dormente perante o mundo excessivamente centrado na visualidade. Uma das personalidades que mais se destacou foi o filósofo francês Guy Debord que publicou, em 1967, o livro A sociedade de espetáculo, no qual elabora uma análise cáustica da influência do capitalismo moderno sobre vários aspetos do quotidiano contemporâneo. O livro de Debord veio intensificar a crítica geral e estabelecida ao neocapitalismo, contudo o grupo Internacional Situacionista1, do qual Debord foi cofundador e porta-voz, já tinha vindo a alertar que, perante a saturação da cultura visual existente, a prática artística não devia almejar a produção de objetos para serem consumidos em passividade contemplativa. Escreveu Debord, no seu manifesto situacionista de 1960: “Contra a arte unilateral, a cultura situacionista será uma arte do diálogo, uma arte da interação.” (Debord 1999, 128).

Foram, pois, as premissas do diálogo e da interação, usadas pelo conjunto de artistas que tinham a preocupação em potenciar a participação do espectador com o intuito de o ‘arrancar’ da apatia visual e do seu papel tradicionalmente passivo diante uma obra de arte, que até ali tinha sempre surgido como algo para ser contemplado a uma distância solene e respeitosa. Guy Debord, e os Internacional Situacionistas em geral, relaciona o fim da sociedade de espetáculo com o fim da recepção passiva da obra de arte, sendo que o declive da contemplação se associa à crescente tendência de potenciar a ação do espectador e de o incluir no espaço da obra, que antes fora impenetrável.

A ideia da obra transportar o seu espaço de significação para junto do espectador conduz-nos facilmente até à chamada arte relacional, nomeadamente ao Happening, à Instalação mas principalmente até à Escultura Minimalista dos americanos Donald Judd, Carl Andre e Robert Morris. As caixas acrílicas de Judd, os tijolos de Andre e os poliedros em contraplacado de Morris não foram recebidos sem polémica pela maioria do público, mas são exemplos notáveis de obras pioneiras de arte relacional. Estes três artistas americanos nunca esconderam a forte influência que um livro escrito em 1945 (mas apenas traduzido para Inglês em 1962) exerceu neles – trata-se de A fenomenologia da percepção, do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty.

Queremos destacar dois pontos importantes no pensamento de Merleau-Ponty, que alicerçam os conceitos da arte relacional. Primeiro, o ‘objeto’ é inseparável do indivíduo que o percepciona. Eles estão reciprocamente ligados uma vez que a obra, quando assimilada, é investida pela exploração sensorial do espectador. Segundo, a percepção não se limita à visão mas engloba a totalidade do corpo. A relação entre o sujeito e o seu entorno é, necessariamente, dependente do eu num dado momento e numa matriz de circunstâncias especificas que determinam a percepção2. Ou seja, Merleau-Ponty defende que há uma inter-relação entre o sujeito e o mundo que o rodeia, que cria também uma interdependência uma vez que um influi sobre o outro. Como colocou Merleau-Ponty:

“Não vejo [o espaço] de acordo com o seu aspeto exterior; eu vivo-o a partir de dentro; estou imerso nele. Afinal, o mundo está todo em meu redor, e não à minha frente.” (1964, 78).

Dessa forma, Merleau-Ponty defende a teoria de que o sujeito-recetor apreende a obra através da sua própria visão do mundo, com as suas expectativas, emoções e referências, no fundo com a sua humanidade, e que tudo isso funciona como um filtro sempre subjetivo e pessoal, que torna o processo de significação estética num procedimento de natureza aberta. A obra não deverá ser vista como um sistema hermético e estanque, fechado nele mesmo, mas como algo que está à espera do espetador para transmitir um significado, que será sempre circunstancial.

Neste enlace, parece-nos oportuno referir aqui as propostas de Hans Robert Jauss (1978) sobre este assunto, que ele próprio denominou de estética da recepção. Jauss, cujo pensamento se centrou na literatura mas que o podemos articular com os domínios das artes visuais, apoia-se na ideia central que a interpretação de uma obra pressupõe não só o seu ‘horizonte interno’ como o seu ‘horizonte de expectativas’, que se liga à experiência prévia na qual a significação estética se inscreve. Nesse sentido, para Jauss, a obra não comunica apenas o que pretende comunicar, pois à sua intenção acrescenta-se a intenção de quem a recebe. Clarifica Jauss:

“O que significa que, mesmo no momento em que é lançada, uma obra jamais se apresenta como novidade absoluta que surge num deserto de informação; por todo um jogo de anúncios, de sinais – manifestos ou latentes – de referências implícitas, de características já familiares, seu público está predisposto a um certo modo de recepção” (Jauss apud Joly 1996, 62)

Num dos seus textos mais populares e difundidos, Roland Barthes (1977) chega mesmo a falar em A morte do autor (texto primeiramente publicado em 1967). Barthes usa este título provocativo para questionar a noção estabelecida de autoria por dois prismas. Por um lado, que nada é criado sem referentes prévios, sem estímulos exteriores e a partir de um vazio mental. Como tal, qualquer obra terá vestígios, mais ou menos evidentes, de um conjunto de outras obras já existentes e que serviram de inspiração, mesmo que de forma inconsciente, à concretização daquela obra em particular. Por outro, e esta mais relevante para os interesses deste texto, de que é o espectador, em última análise, quem atribui o significado à obra, pois o ato de a receber também é um ato de a interpretar, na sua subjetividade pessoal. Como tal, Barthes sugere que a transmissão de significado da obra deve ser entendida como um processo de natureza fluida, uma vez que depende de quando e por quem é recebida. Como tal, parece-nos claro que a função do espectador vai naturalmente para lá da mera recepção passiva da obra de arte, ou seja, mais do que apenas tentar descortinar o significado que a pessoa que a assinou lhe atribuiu originalmente.

Contudo, é importante perceber que o reposicionamento da noção de autor está, cronologicamente, mais distante do que se possa pensar. Na década 1920, o russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), um autor negligenciado em vida mas hoje considerado um dos mais notáveis teóricos da literatura, inaugura o Dialogismo. O campo de ação de Bakhtin centra-se na literatura mas também aqui as suas ilações e argumentos podem ser, sem dificuldade, extrapoláveis a outros campos da arte. O dialogismo de Bakhtin introduz o tema da ‘crise da autoria’ através da identificação da necessidade de revisão do papel do autor e do receptor. Para Bakhtin, a ideia de autor não está relacionada com o sujeito-criador mas “pelo próprio lugar da arte na totalidade da cultura, uma vez que o objetivo do sujeito-criador não deve ser superar outros na arte, mas [superar] a arte mesma.” (Giannetti 2006, 109). O processo de superar a arte relaciona-se com a ideia de a receber como uma estrutura aberta. A crise manifesta-se na resistência, dentro do seu determinismo, dos diferentes domínios da cultura a uma contaminação profícua entre si. No entender de Bakhtin, o autor era parte integrante da obra, e como tal, a sua existência fica em modo latente até ressurgir no processo de recepção da obra por um espectador ou leitor. Como clarifica Bakhtin:

“O autor não pode nem deve ser por nós definido como pessoa, porque estamos nele, vivenciamos sua visão ativa. (...) O autor, antes de tudo, deve ser compreendido a partir do acontecimento da obra com o seu participante.” (Bakhtin apud Giannetti 2006, 109).

As propostas de Bakhtin, primeiro, e de Merleau-Ponty, Jauss e Barthes, depois, pretendem superar equívocos existentes na teoria de comunicação sobre a relação trial autor-obra-receptor. Ainda que de forma diferenciada, todos sublinham a ideia que não existe um objeto artístico independente do seu contexto e/ou do observador que assume sua significação. Deveremos aceitar que a recepção da obra é um processo de construção contínua, volátil e permeada por inúmeras variáveis, tantas quanto os sujeitos que a percepcionam. É, pois, somente munido dessa consciência que podemos entender a extensão do poder que o espectador exerce na obra artística.

2

O surgimento da máquina-computador no mundo das artes visuais provocou, desde o primeiro momento, a obliteração dos modelos tradicionalmente estabelecidos. As primeiras obras produzidas com recurso às tecnologias computacionais3 vieram firmar a crítica Situacionista Internacional de Guy Debord e, nesse enlace, o espectador foi-se tornando, desta vez de forma mais inequívoca do que proposto anteriormente, elemento ativo na formulação da obra.

À medida que as possibilidades do computador foram evoluindo, os artistas foram se apropriando delas e à arte participativa sucedeu a arte interativa,4 que adicionou a interface técnica e a noção de programa como novos elementos constituintes da obra.

A interatividade aparecia como nova condição para a recepção da obra de arte, fruto de um desejo coletivo em flexibilizar os limites impostos pela obra de arte tradicional.

O artista e escritor espanhol Julio Plaza (2003) hierarquiza a abertura da obra em três níveis distintos:

  1. A abertura de primeiro grau remete à qualidade polissémica da obra, à sua riqueza de significações. As referências mencionadas até aqui, Bakhtin, Merleau-Ponty, Barthes e Jauss, mas também Umberto Eco (1991), no seu livro Obra aberta fazem entender a obra de arte dentro deste nível quando a descrevem como uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados num só significante.
  2. A abertura de segundo grau relaciona-se com a chamada arte participativa, onde processos de interação física com a obra acrescentam atos de liberdade sobre a mesma, que que faz incluir o acaso como elemento constituinte da obra. As noções de ambiente e participação do espectador são propostas típicas de década 1960. Ambientes artísticos acrescidos da participação do espectador contribuem para a desmaterialização da obra de arte e para a recepção como recriação (homo ludens).
  3. A abertura de terceiro grau relaciona-se com os processos promovidos pelas dinâmicas da interatividade tecnológica. Estamos na abertura mediada por interfaces técnicas, que coloca a intervenção da máquina como agente decisivo de instauração estética, próprio das imagens técnicas.

Para melhor atingirmos os objectivos a que este texto se propõe, vamo-nos ater no terceiro grau de abertura sugerido por Plaza, que vem colocar o espectador numa posição inédita. Pela primeira vez na sua história, o espectador encontra-se na condição de ser partícipe na constituição e significação da obra que percepciona, que deixa de ser recebida como um objeto fechado e distante, apresentada como um elemento ‘estrangeiro’ ao espectador. Com a nova possibilidade de atuar sobre a obra, pelo atributo da interatividade, o expectador envolve-se na sua estrutura não-linear, mediada pela interface técnica e por uma dinâmica de input-output. Assim, inaugurava-se uma tendência

“(...) que insiste mais sobre a produção do que sobre o produto e que tenta desconstruir o processo de criação a fim de tornar manifesta sua intima e mutante estrutura.” (Couchot 2003, p. 103).

Ora, quando o espectador deixa de estar diante da obra, para passar a estar dentro dela, o contemplador e o contemplado (ou sujeito e objeto) são equivalentes. É precisamente esta constatação que levou Baudrillard (1991) a proclamar o fim da sociedade de espetáculo identificada por Debord e pelo grupo Internacional Situacionista, pois se o espetáculo implicava a contemplação da obra, então constata-se que estamos agora numa outra contemplação, a contemplação de nós mesmos dentro da obra enquanto imagem.

“Já não estamos na sociedade do espetáculo de que falam os situacionistas, nem no tipo de alienação e de regressão específicas que ela implicava. O próprio medium já não é apreensível enquanto tal, e a confusão do medium e da mensagem (McLuhan) é a primeira grande fórmula desta era.” (Baudrillard 1991, 43-44)

A possibilidade de a obra absorver o espectador, converte a imagem num espaço imersivo que se evidencia pelo viés da interatividade. A relação entre o espectador e a obra passa a ser uma experiência necessariamente dominada pelo aspeto físico, no sentido em que implica um agir performativo ao espectador. Por essa razão, a imagem torna-se um território de navegabilidade e de experimentações e, nesse processo, o foco de atenção desloca-se do objeto em si para a situação relacional que se cria, causada pela abertura comportamental que a arquitetura não-linear da obra oferece. Desse modo, o espaço é potencialmente infinito uma vez que se redefine a cada novo acesso do espectador e, ao se inscrever na obra através de uma ação necessariamente única e individual, a especificidade do espectador (e da sua interação) passa a ser também a especificidade da obra.5 Ou seja, no momento da interação, a obra passa a estar vinculada ao espectador-atuante. Veja-se o que diz Umberto Eco sobre este assunto:

“O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra a acabar. Não sabe exatamente de que maneira a obra poderá ser levada a termo, mas sabe que a obra levada a termo será, sempre e apesar de tudo, a sua obra, não outra, e que, ao terminar o diálogo interpretativo ter-se-á concretizado uma forma que é a sua forma.” (Eco 1991, 62).

Nesse espaço relacional que se cria, continua a existir um papel destinado ao artista (que faz ou propõe) e um papel destinado ao espectador (que desfruta), mas as fronteiras tornaram-se permeáveis: o artista deixou de controlar totalmente a formalização da obra, delegando ao receptor uma parte da responsabilidade da autoria.

Pela primeira vez, a técnica é tão importante na leitura e significação da obra como o próprio objecto em si. O produto final (a obra) está agora dependente das potencialidades de programas (software) e computadores (hardware) que geram a obra de arte, de tal forma que o interesse por parte do espectador tende a repartir-se entre o produto gerado e aquilo que o gerou. É assim instituída, na sua plenitude, uma tendência que “insiste mais sobre a produção do que sobre o produto” (Couchot 2003, 103).

A curadora e teórica Cláudia Giannetti aborda este tema do seguinte modo:

“No campo da criação interativa, o processo predomina sobre a obra, o que significa uma relação absolutamente dinâmica e mutável, ao contrário da ideia tradicional da obra acabada e permanente. (...) Para promover o intercâmbio real entre o projeto artístico e o público (usuário), como uma forma de diálogo aberto, participativo e criativo, o artista aceita renunciar à autoria única e última da obra.” (Giannetti 1997, 32)

3

Na comunicação com a obra, o corpo-espectador tem um potencial para mover, pensar e sentir que, na terminologia anglo-saxónica, se denomina de embodiment (corpo-em-relação). Pela ação física do corpo, o espectador entra em tempo real no espaço imagético, convertendo o local que tradicionalmente era de contemplação em espaço de imersão. Com esta nova possibilidade de relacionamento com a obra, pautada pela presença física do seu corpo, o espectador transforma-se em parte constituinte da obra, uma vez que passa ele mesmo a ser mais uma imagem dentro da obra, produzindo, por essa via, a sua diferença.

Assim que o espectador é implicado na construção da obra interativa, ele entra em modo atuante, de modo a explorar as possibilidades de interação com a obra. A partir desse momento, a significação da obra passa a depender da ação do espectador que, por estar dentro do espaço de representação, recebe a obra, não como um objeto para ser admirado à distância, mas como uma experiência imersiva onde não apenas o seu olhar, mas todo o corpo, se inscreve na obra. O tato (e o gesto) é assim introduzido no sistema significante e opera agora em paralelo com a visão, acrescentando à experiência estética uma relação física com a obra, para além da emocional. O reconhecimento da importância do corpo do espectador na significação das obras interativas deve ser realçado, como afirma o professor Nathaniel Stern:

“Temos que evitar concentrar-nos apenas nos signos e imagens que surgem no ecrã ou na interface, evitar de privilegiar a tecnologia e aquilo que ela oferece. Temos que nos envolver com a qualidade e estilos de movimentos ensaiados com a arte interativa.” (Stern 2013, 15-16).

Stern afirma que não se deve somente prestar atenção ao que a arte interativa é enquanto objeto tecnológico gerador de signos, mas também ao que a arte interativa faz ao espectador enquanto molda o potencial do seu corpo para o embodiment. Esta abordagem, a que Stern chama de ‘corpo implícito’, permite uma forma mais completa de analisar a obra de arte interativa e apreender a verdadeira amplitude do seu potencial. Ao integrar o corpo-espectador na significação da obra, Stern transcende a analise tradicional à arte interativa, uma vez que se extrapola para domínios de ‘inter-atividade’ e ‘relacionalidade’.6 Ambos se focam no potencial de embodiment que emerge no encontro entre o espectador e a obra e salientam a potencialidade de mover-pensar-sentir por parte do receptor, enquanto experiencia arte interativa.

Isto resulta em situações de cariz performativo, potencializadas pela relação física entre o espectador e a interface técnica da obra e, nesse sentido, o espectador da arte interativa é comparável à figura do ator, uma vez que a formulação da obra depende da sua performance. Para além disso, a obra convida o espectador a adotar uma postura diferente e singular diante dela, pois abandona-se a neutralidade do espectador tradicional e propicia-se um ambiente onde o espectador coloca a “máscara” de agente performativo que faz a obra acontecer (Couchout 1997).

O espectador, pela ação física do corpo, entra em tempo real no espaço imagético, convertendo o local que tradicionalmente era de contemplação em espaço de imersão. Essa ação performativa do espectador, necessária à efetivação da obra, é assistida por outros espectadores, o que vem estreitar ainda mais a relação deste género com as artes cénicas, primeiramente identificada pelo crítico Michael Fried (2002), no texto Art and objecthood de 1967. Fried, apoiando-se no exemplo específico da escultura minimalista, propõe que a instalação artística se coloca em ‘situação’, isto é, indexa-se ao espaço onde se encontra e partilha-o com o espectador. Nesse sentido, as ilações de Fried sugerem que esta nova arte não já pertence à esfera privada do espaço psicológico, mas ao espaço cultural. É nesse sentido que Fried descreve os novos objetos artísticos como sendo mais próximos do teatro do que da escultura, pois partilham com as artes cénicas algumas características fundamentais. Para além das já identificadas, há também o factor da temporalidade, pois em vez de existir num tempo e espaço transcendente (significado pela moldura ou pedestal da arte tradicional), o ato performativo vive no espaço e tempo que é também o do espectador. Isto é, a obra interativa ocorre no tempo em que o corpo do espectador se imprime no sistema da obra, provocando a justaposição do tempo de sua criação com o tempo de sua socialização. Depois, prossegue Fried, a experiência de percepção, tal como no teatro, é marcada por uma certa duração, uma vez que não se pode assimilar a totalidade da obra com um único olhar. Por último, promove uma experiência, em vez de uma contemplação, pois necessita da presença física do espectador para existir, salientando a quebra do antigo paradigma da autossuficiência da arte tradicional.

4

Isto direciona-nos até uma questão pertinente para a resolução deste texto – perceber se os modos de ação e recepção são conciliáveis. A questão é pertinente porque o espectador de arte interativa é colocado na posição ambivalente de percepcionar a obra e de agir sobre ela, ou seja, ser produtor e, simultaneamente, também espectador da obra. Qualquer tentativa de resposta satisfatória a esta questão encaminha-nos até aos princípios da endofísica, desenvolvidos pelo cientista alemão Otto Rössler.7 A implicação é oportuna uma vez que a endofísica parte do reconhecimento do mesmo paradoxo – que o sujeito é parte integrante do universo e ao mesmo tempo também seu observador. Rössler afirmava que, sendo parte integrante do mundo, o sujeito não pode ter o ponto de vista imparcial e objetivo do observador externo e dessa forma escapar à subjetividade inerente a uma observação a partir do seu interior. Ou seja, a endofísica ensina-nos que a ambição de aceder a uma visão completa do mundo passaria necessariamente pela impossibilidade de nos colocar fora dele.8

A extrapolação da endofísica para a dinâmica da arte interativa é evidente – o espectador é partícipe da obra e com ela desenvolve uma relação de interdependência. Como tal, o modo de recepção da obra pelo espectador é regulada por dois fatores: por um lado, pelo seu ponto de observação interno, dada a sua integração na obra; por outro, por estar em modo atuante, o que interfere com a cognição da obra se considerarmos que os modos de ação e contemplação são inconciliáveis. Por este prisma, considera-se que o espectador que interage e dessa forma se presta a fornecer o input ao sistema, fica impossibilitado de aceder à obra na sua dimensão total, uma vez que se encontra ‘dentro’ dela. Ou seja, uma vez que a obra interativa inclui o espectador que a formaliza, o acesso aos dois elementos que compõem a globalidade da obra (o objeto artístico e o espectador que interage) é alcançado somente enquanto observador externo do momento de interação, isto é, na condição de meta-espectador. O meta-espectador assume-se aqui como um duplo expectador, no sentido em que se trata de um espectador (em contemplação) a observar outro espectador (em ação).

É, pois, nessa segunda dimensão de observação, enquanto espectador do espectador em ação, que se acede ao corpus global da obra interativa.

Notas finais

1 Grupo internacional de artistas e teóricos marxistas, activo entre 1957-1972, que tiveram forte influência nos eventos de Maio 68.

2 O argumento de Merleau-Ponty sobre a interdependência entre sujeito e obra ganhou um tom político e ético no seguimento dos eventos de Maio de 1968: a pluriperspectiva promovida pela arte relacional veio a ser comparada aos direitos de emancipação de política liberal e à oposição de aceder à realidade a partir de um ponto de vista fixo. Rejeição do ‘cone de perspetiva’ renascentista que fixava o espectador num ponto de vista ideal (vantage point).

3 Em 1968, na exposição Cybernetic Serendipity, em Londres, organizada por Max Bense e Jasia Reichardt, expõem-se obras pioneiramente criadas com a ajuda do computador, inaugurando a polémica “pode o computador criar obras de arte?” (Moles, 1990).

4 A distinção entre arte participativa e interativa é subtil, mas entende-se por arte interativa uma forma artística que foi produzida com o propósito de promover um diálogo explícito entre obra e espectador, cujo desenrolar vai definindo da obra. Esse diálogo manifesta-se com a intervenção física do seu espectador. É precisamente o conceito de diálogo que traça a principal diferença entre arte participativa e interativa, pois, no primeiro caso, o input do espectador não implica um feedback da obra, como se verifica na arte interativa. Acrescenta-se que o conceito de interatividade é viabilizado tecnologicamente por Ivan Sutherland, em 1962.

5 Ressalva-se que o controlo do espectador sobre a obra é apenas aparente, pois nunca poderá ultrapassar as possibilidades da sua estrutura gramatical. Por muito que a obra (ou o seu sistema) pareça aberto ao seu espectador, o espectro de interação depende sempre tanto daquilo que foi pensado pelo artista como dos próprios limites do sistema que suporta a obra.

6 Inter-activity e relationality, na terminologia usada por Stern.

7 O relacionamento das especificidades da arte interativa com a teoria da endofísica foi primeiramente traçada por Peter Weibel (1993).

8 Rössler propõe a utilização do computador para criar endossistemas (sistemas internos) virtuais e assim aceder externamente a esse mundo simulado.

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