Kurika - an interactive mixed reality and Virtual Reality art installation

Kurika - uma instalação de arte interativa em realidade mista e virtual

Sérgio Eliseu

NIAM – Núcleo de Investigação em Arte e Multimédia do Isce Douro, Portugal

ID+, Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura

Maria Manuela Lopes

NIAM – Núcleo de Investigação em Arte e Multimédia do Isce Douro, Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, i3s, Portugal

Gilberto Reis

NIAM – Núcleo de Investigação em Arte e Multimédia do Isce Douro, Portugal

Marta Noronha

NIAM – Núcleo de Investigação em Arte e Multimédia do Isce Douro, Portugal

Abstract

“Kurika” presents itself as a research project / tribute to the literature work “Cão como Nós” by Manuel Alegre. It was publicly presented as an artwork at “Escritaria2019” both as an interactive mixed reality and Virtual Reality installation. In it, a three-dimensional dog made up of words (all of the Alphabet) responds to voice commands (barking if its name “Kurika” is said) and to movements of the audience, triggering sounds and moving images of places of experiences and affections. The main elements of a continuous nonlinear narrative triggered by the interaction. Therefore, the present paper speaks about the development of this project and argues the role of a luminous plane where virtual and real words relate to memory.

Keywords: Escritaria2019, Virtual Reality, Mixed Reality, Digital Narrative, Memory.

Introdução

No âmbito de um acordo de cooperação entre o Instituto Superior de Ciências da Educativas do Douro (ISCE Douro, Penafiel) e a organização do festival literário “Escritaria2019”, a presente investigação foi coordenada pelo Departamento de Artes e Multimédia em estreita colaboração com a direção do Museu Municipal de Penafiel. Uma relação interinstitucional frutífera que permitiu potenciar um articulado reposicionamento de compromissos em torno do ensino artístico, cujos efeitos derivam essencialmente da prática do artista-investigador na sua simultânea qualidade de formador. Os métodos de investigação, que temos vindo a colocar em prática em várias edições do festival, caracterizaram-se pelo uso da prática artística e dos seus múltiplos materiais, tendo em vista a construção de um discurso académico artístico que se encontra manifesto em trabalhos apresentados publicamente, bem como nas próprias práticas exercidas.

O evento “Escritaria”, mais do que um festival literário de Penafiel, é um projeto multidisciplinar que, anualmente, percorre a memória de escritores que se expressam em língua portuguesa, que ainda se encontram entre nós e que sejam considerados pela organização mais relevantes. Um interessante exercício de partilha que se transforma num contexto de oportunidade para alunos e professores produzirem trabalhos criativos que sirvam, não apenas como veículos de divulgação, mas que também obtenham um valor artístico, cultural e científico intrínseco (Eliseu 2018, 225). O principal objetivo da edição de 2019 foi homenagear o autor Manuel Alegre, o que nos permitiu explorar diferentes vertentes da sua obra considerando o campo de ação das diversas unidades curriculares envolvidas. Contudo, para a execução prática do projeto que aqui apresentamos, tivemos como ponto de partida a leitura e interpretação da obra “Cão como nós”. Um livro que nos permitiu, simultaneamente, consolidar práticas de forma multidisciplinar, desenvolvendo habilidades e conhecimentos através de uma vasta negociação de métodos, técnicas e abordagens que pudessem consistir num enriquecimento curricular.

Assim, na prática, a peça “Kurika” apresenta-se como um projeto/homenagem à obra “Cão como nós” de Manuel Alegre. Uma instalação interativa, em realidade virtual (RV) e em realidade misturada (RM), onde um cão tridimensional, estruturalmente definido com palavras tridimensionais (todas do Alfabeto) em sistema de partículas, responde a comandos de voz (ladrando se for dito o seu nome “Kurika”) e a movimentos do público despoletando sons e imagens.

A narrativa desenrola-se num plano lumínico, alcançado pelo texto, onde as palavras remetem para a evocação da memória de Kurika (o nome da personagem canina do livro) presente em excertos de vídeos ruidosos, mas também despoletados pela interação, onde se alude com imagens a locais de experiências e afetos ligados ao mesmo.

Desenvolvimento e apresentação de Kurika

Não obstante a complexidade do projeto desenvolvido, bem como a sensibilidade da temática que o norteou, esteve sempre presente o objetivo principal de desenvolver nos alunos competências ao nível dos processos de conceção, planificação, desenvolvimento e prototipagem de sistemas e aplicações multimédia interativas. Não apenas com enfoque no resultado final, mas, essencialmente, no acompanhamento das suas diferentes fases, designadamente ao nível da aquisição e tratamento de som e vídeo, animação e interação, prototipagem, validação e implementação. Para tal, foram executadas, simultaneamente, estratégias de desenvolvimento de conhecimentos ao nível dos fundamentos de programação, enquanto ferramenta utilizada nas formas de expressão e comunicação visual, no âmbito da criação e articulação de dinâmicas visuais interativas.

Interativa, com modelos tridimensionais, vídeos, sons, animações e estratégias narrativas coproduzidas por alunos, a peça foi pensada previamente para o espaço da sua instalação – o museu de Penafiel. No domínio do som deu-se principal relevância ao estudo da sua espacialidade como elemento poderoso para provocar não só interatividade, mas fundamentalmente, como elemento gerador de significado. Componente que, por esse motivo, esteve destacada em ambas as versões da peça.

Imagem 1 – Manuel Alegre a utilizar a versão VR do projeto Kurika.

A execução do projeto serviu-se da plataforma “Unity3d”, tendo esta sido configurada para proporcionar uma cena virtual utilizando letras tridimensionais modeladas no programa “Blender”. Na cena, um cão tridimensional composto por palavras, renderizadas em formato de partículas, responde a comandos de voz e a movimentos do público. O resultado foi um ambiente reativo a controlos físicos, bem como ao posicionamento do utilizador, ao qual se adicionou suporte para óculos de realidade virtual (Oculus Quest). No local, adaptou-se, ainda, em RA, uma projeção de 3x2 metros (em 2D). Esta projeção, que chamava mais facilmente a atenção, permitiu também que um conjunto mais vasto de utilizadores interagisse com a restante narrativa criada. Interação essa que se podia desencadear por sons ou em função do posicionamento do público.

A metodologia pedagógica utilizada no desenvolvimento deste projeto foi predominantemente ativa, alicerçada na demonstração. Todavia, existindo a necessidade de introduzir aos alunos noções e características básicas, como, por exemplo, de estruturas e sequências narrativas, adotou-se simultaneamente o método expositivo. O que decorreu acompanhado de outras técnicas pedagógicas, como a exposição participativa, formulação de perguntas, trabalho de grupo, projeto e simulação orientada à análise crítica por via da apresentação aos colegas das tarefas propostas pelos professores.

Os alunos envolvidos participaram nos trabalhos, desde a sua conceptualização, recolha e tratamento de conteúdos, à execução final, tendo realizado diversos estudos prévios, onde destacamos a execução de maquetes e modelos tridimensionais animados que permitiram desenvolver competências em programas de modelação 3D.

O público teve a possibilidade de optar por ser meramente espectador, assumindo uma postura mais passiva, ou ativa, fazendo parte de uma espécie de coautoria. Esta postura mais ativa acreditamos ter sido facilmente promovida pelo fascínio tecnológico que, de forma espectável, estabeleceu o “jogo” que pretendíamos com o público. Porém, embora o interator possa experimentar um dos aspetos mais excitantes da criação artística, a emoção de exercer poder sobre materiais sedutores e plásticos, podemos afirmar que não se trata de autoria, mas sim de ação (Murray 1998, 153).

Imagem 2 – Ambiente VR.

Realidade Virtual e ilusão

A imersão na imagem digital é uma técnica de interface entre o homem e o computador na qual se dá ao operador a sensação de se encontrar no interior de um espaço tridimensional constituído por objetos visíveis com volume (Cadoz 1994,129). A utilização imersiva da RV, segundo Grau (2003), por contraste em relação à simulação, que não tem que ser imersiva, descreve um espaço ilusório dirigido aos sentidos, pois o utilizador recebe uma impressão de movimento ao focar objetos que se aproximam e afastam dele, enquanto numa pintura, por exemplo, a profundidade é experimentada ou presumida unicamente de acordo com a imaginação, devendo-se parte desta ilusão a técnicas conhecidas – tais como a perspetiva (Grau 2003).

A tecnologia da RV tem-se vindo a massificar muito graças a dispositivos específicos como HMDs, Shutter-Glasses ou CAVEs, com os quais os utilizadores começaram a navegar e interagir com cenários que se podem modificar em tempo real. Com efeito, a última década trouxe-nos múltiplos dispositivos funcionais a um preço de consumo de massas e, atualmente, ter um dispositivo de RV pode ser tão trivial como possuir uma televisão. É possível dizer, com bastante segurança, que é uma tecnologia que estabilizou e que se encontra ao dispor do grande público e não apenas, como no passado recente, concentrada nos grandes centros tecnológicos, tais como universidades ou outros institutos de investigação. Por consequência, temos vindo a assistir a uma cada vez maior utilização desta tecnologia por parte também dos artistas, que encontram neste meio mais uma forma de expressão.

Todavia, a tecnologia não é nova e é explorada, pelo menos, desde a década de sessenta do século XX. Apenas se tornou mais acessível e com aparatos menos complexos e dispendiosos. Entre os mais famosos equipamentos desenvolvidos no seu aperfeiçoamento destacou-se, por exemplo, o projeto C.A.V.E., pela sua forte dupla capacidade imersiva e interativa. Um conceito baseado num cubo com 3x3x3 metros, que está aberto num dos seus lados e onde a ilusão de se encontrar dentro de um espaço tridimensional/virtual se consegue graças à utilização de óculos 3D, bem como às projeções exibidas em todas as paredes e no chão (Lieser, 2009). Curiosamente, o nome “C.A.V.E.” resulta de um acrónimo: Cave Automatic Virtual Environment (“Caverna Digital – aludindo à caverna de Platão”) e funda-se numa ideia visionária do artista e investigador Daniel J. Sandin, para a criação de um espaço inteiramente virtual. Sandin desenvolveu o princípio nos anos de 1980, numa época em que os computadores ainda não podiam gerar ambientes virtuais de grande complexidade em tempo real. Por esse motivo, a primeira CAVE apenas foi implementada no ano de 1991. Não se trata de um caso isolado, muitos outros projetos interessantes no campo da imersão/interação com a imagem digital poderiam aqui ser referenciados como pioneiros e inovadores de instalações em RV, dado que, pelo menos desde os anos 70 do séc. XX, estes são explorados pela comunidade artística nos seus trabalhos. Contudo, algumas das questões em torno dos nossos sentidos podem revelar-se bastante perniciosas e escrever sobre RV implica, necessariamente, pensar sobre a Realidade em si. O terreno é vasto e complexo. A interrogação filosófica em torno do Real é interminável e acompanha-nos, certamente, desde muito antes de Heraclito e da alegoria da caverna de Platão. Atualmente, olhar para o mundo sensível como um mundo de “meras” aparências, para lá do qual está uma realidade (apenas) inteligível, é uma posição que ainda recolhe os mais diversos tipos de adeptos. Em contraponto, a filosofia contemporânea, principalmente com o contributo dos autores do campo da fenomenologia, tem vindo a procurar questionar esta perspetiva dual sobre aparências/realidade e, na base desta discussão, podemos encontrar vastas posições relativas à perceção, sendo nela que se centram as múltiplas configurações que nos permitem aceder à realidade (Eliseu, 2016).

O estudo do processo de conhecimento da realidade – um caminho bastante longo – compôs-se essencialmente por duas vias. Uma das vias aborda o conhecimento a partir das ciências exatas, ou seja, pelo que podemos analisar recorrendo aos sentidos (Empirismo). A segunda via, oposta a esta, tem na Razão a sua base (Racionalismo), dando mais importância às ciências experimentais e sendo o conhecimento alcançado pela razão e não pelos sentidos.

Segundo Damásio (2013), partilhamos com outros seres humanos, e até com alguns animais, as imagens em que se apoia o nosso conceito do mundo. Porém, “essas imagens são baseadas diretamente em representações neurais e são estas que nos permitem recordar um dado objeto, um rosto ou uma cena” (Damásio 2013, 138-139). Portanto, o que obtemos do real é uma mera reprodução, uma interpretação, uma reconstrução do original (Damásio, 2013). Acontece que “tal realidade, mental neural e biológica, é a nossa realidade” (Damásio 2013, 301). Nunca poderemos saber até que ponto o nosso conhecimento da realidade «absoluta» é fidedigno. “O que precisamos de ter é uma consistência nas construções da realidade criadas e partilhadas pelos cérebros de cada um de nós” (Damásio 2013, 301). Contudo, a anterior perspetiva não significa que vemos coisas que não existem. Pelo contrário, percecionamos uma aparência objetiva e partilhável. Ou seja, como questiona e afirma Latour: “É a realidade construída ou real? Ambos.” (Latour 1993, 35).

Talvez a tecnologia da RV nos permita ir mais além e alcançar um novo conjunto de pressupostos alternativos, possivelmente através de um estado pós-humano ou pela criação de um mundo imaginário. Tal como propõe Feyerabend (1975), descobrindo os traços do mundo real que supomos habitar. Ainda que, porventura numa triste ironia, na verdade esse mundo imaginário possa não resultar em mais do que um mundo simulado dentro de uma outra simulação na qual já vivemos (Eliseu, 2016). Pois, tal como defendem os teóricos do simulismo, pelo menos uma das seguintes preposições é verdadeira: (1) É muito provável que a espécie humana se extinga antes de atingir um estágio “pós-humano”; (2) é extremamente improvável que uma civilização “pós-humana” execute um número significativo de simulações da sua história evolutiva (ou variações); (3) estamos quase certamente a viver uma simulação de computador. Ou seja, “dificilmente a civilização humana irá alcançar um estágio pós-humano a menos que já nos encontremos a viver dentro de uma simulação” (Bostrom 2003, 243-255).

Narrativas Digitais

Simulações como a que encontramos na instalação Kurika têm um poder muito superior a qualquer outro meio para nos transportar para outra realidade, de um modo extremamente realista e imersivo. Neste sentido, elas podem despertar certos temores, mais ou menos apocalíticos, sobre a invasão da técnica no humano, e uma consequente desumanização da experiência humana (Martins 2011, 18). Anseios estes que se acentuam quando falamos em sistemas assentes em algoritmos e automatismos. Os mundos imaginários da ficção e dos jogos digitais são frequentemente, ainda hoje, vistos como forma de escapismo e alienação da realidade (Bruner, 1991). Contudo, Kurika demonstra que a realidade virtual pode ser uma forma de resgate de histórias e experiências que apelam ao que de mais humano há em nós, uma forma não de escapar à realidade, mas de regressar a um real já passado.

Imagem 3 – Frame da interação projetada.

No campo do digital, sobretudo nas manifestações mais interativas e não lineares, a narrativa diverge dos padrões e estrutura das narrativas tradicionais. Como qualquer narrativa, os ambientes imersivos contêm personagens, intrigas e situações dramáticas, mas não seguimos mais um protagonista dentro de uma história que corre imperturbada perante os nossos olhos e/ou ouvidos: o utilizador torna-se ele próprio o herói da jornada, o explorador desse mundo e o agente dessa narrativa; isto acontece através da imersão num mundo simulado, que podemos percorrer e explorar, ativando reações e interações com objetos e seres automáticos (Murray 2008, 5, 364ss). Parece ser sobretudo o automatismo destes elementos digitais que exacerba os medos quanto à desumanização do utilizador.

Contudo, a invocação e “materialização” simulada e virtual, na instalação Kurika, do cão com o mesmo nome, suscitou no escritor homenageado uma reação extremamente emocional e positiva. O livro “Cão como nós”, em que se baseia a instalação, é protagonizado e foi dedicado, por Manuel Alegre, ao seu cão de estimação, entretanto falecido. Recordando também as palavras do livro e as imagens dos locais preferidos da infância do autor patentes na parte projetada da instalação, a imersão no ambiente de Realidade Virtual permitiu a Alegre uma viagem no tempo, um retorno às suas memórias, do cão que, ainda que virtual, e no seu aspeto alfabético e fantasmagórico, pôde voltar a “afagar”. Como diz Murray, o storytelling (tanto o tradicional, como o digital) pode levar-nos numa “jornada emocionante por um mundo imaginário”, tanto quanto revelar ou inspirar os sentimentos mais profundos do ser humano (Murray 2008, 4). São, assim, os meios tecnológicos de ponta a recriar, a evocar e a invocar virtualmente o que de mais humano há em nós: a memória dos nossos afetos.

A instalação e a re-experiência de Manuel Alegre e sua esposa da convivência e brincadeira com o cão virtual alterou a memória que tinham dele, acrescentando mais uma camada de experiências vividas e partilhadas com o Kurika, fazendo com que se tenha acrescentado uma dimensão nostálgica ligada a uma experiência espacial, não material, levando-nos de volta ao mundo da caverna de Platão e às possibilidades abertas pelas tecnologias como a Realidade Virtual onde o reconstruir da nossa história de vida pós-humana se torna, portanto, um processo de reconhecer o externo muito mais do que o interno e permite outras possibilidades e abertura a múltiplas formas de ser, livres de expectativas de coerência e linearidade.

Um dos tópicos estruturantes deste trabalho foi o de nunca deixarmos de ter presente que os elementos formais da história e seu desenho na materialização das informações e dados, não geram por si só, relevância.

Se o foco for apenas direcionado para a estrutura e interação, o significado é perdido; afoga-se nos dados. No sentido de conseguir humanidade as disciplinas que mais nos parecem capazes de o fazer são as Artes e Filosofias

Sabendo que as histórias têm capacidade de nos obrigar a refletir sobre outros caminhos, evocando emoções que vão além dos gerados no momento; sabendo que elas causam experiências humanas universais e existenciais; sabendo que têm essa capacidade porque transmitem ou referem valores essenciais relacionados à nossa condição humana, avisou-nos que o desenvolvimento do trabalho deveria evitar a fragmentação e superficialidade substantivas e ir para lá das relações semânticas entre dados. Esta maneira de trabalhar centrada no ser humano parece-nos essencial para pelo menos tentar a criação de projetos significativos.

Empatia, razão e intuição fluem juntas aqui, pois o real significado só pode ser criado a partir do valor humano. Martha Nussbaum retrata a compaixão como “the basic social emotion, the capacity to feel pain at the suffering of others” (Nussbaum, 2001).

Pela nossa parte, tentamos que a imersão virtual desse conta da ligação empática entre um ser humano e um cão e de como a perca desse animal (de qualquer ser vivo) é dolorosa.

Memória e imagem digital

“Viagem mental no tempo” é o processo reconhecido como permitindo, em memória autobiográfica (Conway, 1996), a consciência da recuperação dinâmica dos afetos experienciados. Vários estudos têm separado em duas formas distintas: recuperação consciente e direta e recuperação involuntária (como Marcel Proust evidenciou no Em Busca do Tempo Perdido) desencadeada por um cheiro, som ou imagem; neste caso jogamos propositadamente com a memória involuntária do observador. Subjetivamente, entende-se que as memórias são mediadas, pessoais e sujeitas a alterações, em vez de um arquivo fixo de dados intocados aguardando o comando apropriado para reformá-los em imagens (Lopes, 2014). Esse enredo subjetivo é a qualidade que permite que os psicólogos a qualifiquem como memória autobiográfica. Esse tipo de memória liga-nos a lugares, pessoas, animais, detalhes percetivos-sensoriais de eventos (memória episódica) e fatos (memória semântica).

A memória é uma das características que definem a nossa sensação de identidade e o recordar permite fazer algo aparentemente fascinante. Através da lembrança podemos reviver experiências passadas trazendo o ausente para o presente. Na realidade, porém, a memória é frágil e complexa - décadas de pesquisa mostraram que as memórias não são um registo exato e inalterado do passado (Lopes, 2016). O recordar envolve um processo construtivo que é propenso a uma variedade de processos criativos o que proporciona erros e distorções (Schacter, 2001). Como resultado desse processo (re)construtivo, as memórias podem ser drasticamente alteradas ou criadas.

A fotografia (autêntica e/ou manipulada), como suporte externo da memória, tem o poder de a influenciar, alterando crenças e intenções comportamentais das pessoas. Na era digital, houve um aumento fenomenal no número de imagens que as pessoas capturam, compartilham e manipulam - uma tendência que não mostra sinais de desaceleração o que permite verificar o quão facilmente convivemos com o processo reconstrutivo da memória. Nesta instalação essa flexibilidade de adaptação ao que recordamos e de recordar o que mais gostamos e os momentos que constroem a nossa existência que partilhamos com os outros através de pequenas narrativas (ou grande literatura, como neste caso) foi por nós apropriada. Por vezes deparamo-nos com a dificuldade de parametrização do cão digital, procurando pistas na narrativa percebemos traços gerais e porte. Então tivemos de nos ater à ideia de cão e ao nome Kurika. No entanto a instalação conseguiu produzir o afeto previsto no autor e por empatia na restante audiência. Esta capacidade reside no facto da memória, especialmente a autobiográfica, ser multimodal (Rubin, 2005) e do projeto conciliar vários elementos como o vídeo com imagens dos espaços vividos na época por Manuel Alegre, um cão construído por pequenas palavras do autor que se aglomeram no espaço digital e pelo facto do cão digital responder ao movimento do público interatuante e também ao chamamento do seu nome, fornecendo ao cérebro de quem vê pistas visuo espaciais que nos colocam em situações semelhantes já vividas. A instalação pela sua forma de assemblagem evoca a montagem e justaposição percetiva que evoca o processo biológico de relembrar (Lopes, 2016).

O facto do Kurika, além de uma memória, ser um corpo cyborg feito e mediado pela tecnologia (Hayles,1999) permite colocar o discurso de volta na questão do Pós Humano e na época da simulação e das redes-sociais em que vivemos onde a questão da imortalidade digital se aproxima da narrativa construída pelo Manuel Alegre quando dedica o livro ao cão.

Afeto tal como empatia, é um exemplo que demonstra que não somos entidades que existem em separação ou isolamento. Nossos corpos são constantemente afetados pelo nosso ambiente, atmosferas ou outros corpos à nossa volta e, portanto, somos constituídos por e através nossas respostas a estímulos “externos”, de modo que “externos” se tornem “internos” e o binário, portanto, torna-se inviável. A memória fornece muitas associações que se ligam a cada uma das diferentes qualidades sensuais registadas no tempo da experiência inicial e isso é útil em termos de contabilidade para um entendimento pós-humano de si mesmo, sujeito e objeto. A própria memória é uma demonstração de experiência complexa de enredo em que em vez de uma história coerente para um eu racional, experimentamos as nossas reflexões como constantemente entretecidas em diferentes sentimentos, afetos, ambientes e entendimentos do “eu” e da situação. Pepperell (2016) explorou isso em termos pós-humanos, afirmando que a mente e as memórias associadas a ela não são apenas atribuíveis ao cérebro, muito menos qualquer ‘circuito’ dentro do cérebro. Eventos mentais são distribuídos pelo cérebro, corpo e mundo, através do espaço e do tempo. Isso, portanto, demonstra que as nossas memórias, que contribuem muito para a nossa compreensão do “eu”, não são nossas e são dependentes de uma variedade de fatores contribuintes.

Conclusão

O Festival Literário Escritaria homenageia a vida e obra dos autores, logo a questão da identidade e da permanência do autor na obra para além da vida, é sempre por nós equacionada na construção da estrutura dos projetos que fazemos para integrar o festival. Como simultaneamente utilizamos estes momentos para materializar projetos com os alunos e submetê-los ao escrutínio público e do próprio homenageado, os assuntos que decidimos como prementes de serem abordados estendem os conteúdos das Unidades Curriculares dos cursos da área de Arte e Multimédia do ISCE Douro e tentam ir ao encontro dos abordados nas obras literárias escolhidas.

A questão da imagem, da narrativa e da memória e identidade na era digital permeiam o discurso académico e são objeto de reflexão à volta da produção e apresentação da instalação Kurika. Concluímos que a distribuição do eu na era digital torna a memória mais crucial na subjetividade do pós-humano, como demonstração das nossas conexões internas, mas também mais problemática, pois nosso envolvimento com a memória e a auto-narrativa deve-se tornar mais reflexiva e crítica, para que não voltemos a entender o eu como o centro do universo e conquistemos uma relação mais empática e simbiótica com o ‘outro’.

O plano de trabalhos enfatizou essa negociação como uma estratégia chave, fornecendo aos alunos um alto nível de autonomia como estudantes reflexivos, tendo a maioria trabalhado em grupo com o objetivo de uma aprendizagem e respetiva produção cooperativa coesa.

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