AVANCA | CINEMA

Documentary: colonial Imaginary of Minas Gerais

Documentário: imaginário colonial de Minas Gerais

Fernando Augusto Silva Lopes

Universidade do Minho, Portugal

Tiago Vieira da Silva

Universidade do Minho, Portugal

Abstract

The present communication proposal is the result of an empirical research developed during the recording of the documentary “Ouro de Minas: a look at Luso-African-Brazilian cultural hybridity”, which addresses the tourist path from Belo Horizonte to Tiradentes, as a mediation proposal between the colonial past and contemporary social constructions. Therefore, the present article will seek to construct its own theory, multidisciplinary, hybrid and, therefore, legitimate representative of Cultural Studies, to propose a concept of digital image that is credible in the face of the contemporary challenge of a fragmentary, liquid and, above all, cultural reality. guided by network flows.

Keywords: Cultural Studies, Semiotics, Sociology of Culture, Digital Image, Regional Documentary.

Introdução: Uma narrativa do visual

A imagem vem sendo objeto de desejo, adoração e investigação desde que a consciência humana passou a ser percebida como tal, as primeiras imagens de produção humana coincidem com a gênese do homo sapiens. A palavra imagem por si própria já remete a algo mágico, uma maravilha por meio da qual o homem exprime sua mais visceral relação de significância, ligada a uma lógica representativa ao mesmo tempo em que pode ser pura representação da idolatria, do desejo, do ódio e da manipulação. Contextualizar a imagem é um trabalho árduo que pode estar muito mais ligado a uma proposta investigativa do que a uma totalização conceitual, que acredita-se não ser possível em se tratando de um conceito que transita do subjetivo ao geométrico.

Buscar-se-á a contextualização da imagem dentro de um panorama cultural sem, contudo, haver qualquer pretensão de esgotar conceitualmente as diversas possibilidades teóricas que o conceito de imagem pode vir a significar. O que de fato interessa no âmago deste trabalho é compreender a imagem como um produto cultural humano, se transforma de uma produção intimamente ligada às habilidades manuais humanas em um produto técnico capturado pela máquina, para então perder sua relação direta com uma realidade imaginada ou capturada e figurar por meio de uma sequência numérica interpretada por dispositivos tecnocomputacionais na forma de pixels nas telas que compõem o universo dos dispositivos tecnológicos digitais.

Dentro do universo lusófono costuma-se nomear as representações da visão como imagem, buscando tal origem etimológica no latim imago, que designa ao mesmo tempo uma estátua (frequentemente mortuária), aparência e sonho (Melot, 2015, p. 11). Esta definição de origem latina faz com que a imagem possua um vício de origem conceitual pelo qual representação e materialidades são designadas pela mesma palavra. Se tomarmos como referência o universo anglófono verificamos que a palavra image significa a representação do real e do imaginário, enquanto a palavra picture significa as materialidades como o quadro, o filme. Melot (2015) exemplifica essa relação de significância das palavras picture e image como as diferenças semiológicas das palavras escrita, palavra e voz, portanto, é necessário estar em alerta quanto a amalgama representativa da palavra imagem na língua portuguesa, que une representação e materialidade.

Os gregos criaram a palavra mimeses como uma forma de representar a arte produzida pelo autor, essencialmente ligada à imitação e à expressão, a mimeses possui sua origem na palavra imitatio, origem da palavra imitação. O radical im de imago está diretamente ligado ao radical de imitatio. A magia, que se torna a essência lúdica da maioria das imagens, é oriunda do signo sacerdotal que em grego é simbolizado pela palavra magos. Todavia não se pode limitar a imagem a uma fusão entre magia, imitação e produto da representação artística. Este trabalho tende a entender a imagem como uma capacidade humana de lançar um olhar sobre o mundo e produzir simbolicamente uma representação para o que se vê. É dessa forma que as memórias, mesmos as mais efêmeras ou as mais distorcidas pelo tempo ou pela ausência de lucidez podem ser culturalmente designadas. Mas é necessário contextualizar a trajetória histórico-cultural para se confirmar teoricamente esta proposição, caso contrário corre-se o risco de cair na cilada narcisista de confundir o subjetivismo com matéria em um reflexo que só se reconhece através do reflexo (Melot, 2015, pp. 12-16).

A origem histórica da imagem enquanto produção da capacidade intelectual (semiológica) humana remonta às primeiras tribos de Homo Sapiens que, com o domínio das ferramentas, começaram a registrar nas pedras representações de animais e homens em uma suposta ritualização. É importante salientar que a imagem enquanto reflexo já poderia ser objeto de reconhecimento nessas civilizações primitivas, o que decerto é anterior ao domínio das ferramentas.

Não se pode precisar também o momento de reconhecimento das projeções mentais enquanto imagens mentais, estas também decerto precedem às representações por ferramentas. Mas enquanto produto cultural pode-se ligar a gênese das imagens às representações tribais da origem da humanidade (Francastel, 1987).

Melot (2015, p. 24) apresenta a imagem em seus primórdios sob uma continua tensão: em um polo está a analogia e em outro o código. A analogia está ligada à sensibilidade da imagem com aquilo que a mesma representa, por outro lado o código está ligado a tudo que representa um significado. Para Melot (2015, p. 25), portanto, o coração da imagem é uma analogia sensível, mas não há como uma imagem existir sem uma codificação, uma relação semiológica. Para este autor desde a pré-história a imagem se concebe em um eterno embate entre índice e símbolo, abstração e figuração, realismo e idealismo.

Por outro lado, Arnheim (1997) define a imagem desde sua origem como uma relação que só pode existir pela metafisica. Somente por meio de uma alteridade imagética é possível conceber uma representação como sendo uma imagem, pois uma imagem só pode ser concebida como tal a partir do reconhecimento existencial do outro. Ou seja, só é imagem se faz sentido inteligível para o homem enquanto sujeito capaz de produzir e reconhecer uma representação ou um aspecto do campo visual como um recorte psíquico que convencionou-se nomear como imagem. Pode-se concluir que ambas as proposições de Melot (2015) e Arnheim (1997) possuem raízes em campos de conhecimento distintos e que, apesar de antagônicas, será considerado nesta contextualização que ambas são complementares para a proposta de se conceituar a imagem do ponto de vista cultural.

É fundamental também trazer à baila a escrita, a qual este trabalho classifica como a maior representação codificada da imagem, tal codificação soa tão natural e está tão culturalmente enraizada nos matizes do imaginário humano, que são raros os momentos que conseguimos conceber a escrita como uma sequência de imagens, que representam um código específico no qual cada idioma pode ser concebido como uma máquina semiótica de decodificação e significação de um conjunto de imagens-letras.

Melot (2015, p. 25) demonstra que a grande vantagem do código (em especial a escrita) em relação à analogia é que ele traz a uma imagem específica uma interpretação plena, ou seja, o que faz a imagem do “S” não ser confundida com a imagem do “Z” e, portanto, possam ser utilizadas para a construção de um código imagético que possua sempre o mesmo valor. Já a analogia deixa a interpretação da imagem livre e suscetível ao capital mental de cada indivíduo. Porém as imagens carecem tanto de analogia quanto de codificação para serem capazes de criar seu valor de representação e de verossimilhança, o mapa é um exemplo clássico da união entre a analogia e o código.

Com o advento das primeiras civilizações, as imagens ganham um inestimável valor de culto, em especial nas primeiras religiões politeístas, nas quais cada Deus possuía sua imagem e suas lendas (Zunzunegui, 1989). Melot (2015, p. 31) apresenta a teoria radical da imagem de Platão, que faz uma crítica radical da imagem, reduzindo-a a uma sombra, a um “não-ser”, como uma legitimação da autonomia da imagem, libertando-a do seu corpo imaginário e da relação visceral como o modelo que a imagem representaria. É importante notar que dessa forma Platão estava germinando a semente para a negação da representação imagética de Deus nas religiões monoteístas que viriam a se estabelecer na linha histórica da humanidade.

O Deus único das religiões monoteístas é um ser total, é código dos códigos, portanto não é passível de representação, assim como se tornaria a tecnologia em nossos dias. É muito importante observar que, após tantos anos de evolução, o conceito de tecnologia consegue abarcar esta lógica totalizante, ou seja, o logos que se fez palavra e se tornou Deus na contemporaneidade é substituído por uma representação não mais restrita a um “logos”, preponderantemente um “pathos”, mas onipresente e onipotente e da mesma forma incapaz de ser representado por uma imagem, apesar de existir fundamentalmente por meio dela.

É fato que o monoteísmo abriu caminho para uma era de contenção da imagem, se a mesma estava ligada à virtuosidade cultural nas civilizações antigas, com o advento do monoteísmo e os ensinamentos bíblicos a representação do divino pelas imagens tornar-se-ia um sacrilégio. Somente com a publicação dos livros carolíngios, no final do século VIII, a Igreja Católica reconheceria o valor figurativo das imagens. Tal fato não se deu por uma evolução cultural ou filosófica, mas sim como um dispositivo de repressão, pois percebeu-se o potencial das imagens para ser a “escrita dos iletrados”. Melot (2015, p. 33) ilustraria o uso educativo das imagens pelo catolicismo como sendo uma virtude decorativa, um acompanhamento indispensável à liturgia. Acrescenta-se a esta ilustração os interesses de dominação pelo medo que as imagens proporcionaram durante toda Idade Média, sendo a relação de representação, repressão e medo um dos principais dispositivos de poder simbólico utilizados pela Igreja durante sua hegemonia até a gênese do Renascimento no século XV.

Se lançarmos um olhar crítico para a relação da igreja católica com as imagens verificamos que ainda existe um resquício de manipulação pelo medo imagético até os dias atuais, basta observar que a missa televisionada somente é válida se for assistida por um fiel incapaz se de dirigir até à igreja e, mesmo assim, deve ser transmitida em directo (Maffesoli, 1995). Gomes Filho (2008) e Melot (2015) chamam a atenção para o fato que devemos compreender as imagens como um artifício, que jamais “choveram imagens”, ou seja, as imagens possuem a capacidade de esconder por meio daquilo que mostram. A recomendação da igreja católica a respeito da validade da missa televisionada é uma constatação dessa afirmação, deixando claro o poder das imagens e sua eminente violência simbólica.

A chegada do Quattrocento e o Renascimento rompem com o valor ritual da imagem e passam à representação profana, mas tal fato não é restrito à imagem se em uma representação ritual as cenas representadas são verdades absolutas e dogmáticas, as imagens profanas tendem a flertar com a imaginação e com a virtualização dos espaços.

1. Documentário, imagem e cultura

O arcabouço teórico apresentado buscará refletir como a imagem cultural do turismo está sendo (re)significada por meio das construções simbólicas entre o passado colonial e o imaginário turístico contemporâneo. A partir de uma releitura sociológica, serão apresentados os conceitos teóricos para se analisar a correlação entre Turismo e Imaginário à luz dos Estudos Culturais. Como afirma L. Ferrara (1999), dos colonizadores aos emigrantes, a viagem aparece sempre como metáfora do estranho. Porque longínquo, distante, porque desconhecido. Entre a terra descoberta e a pátria escolhida há distância que vai da posse à conquista. Todorov (1982), esclarece que Colombo assume neste universo da viagem um valor quase simbólico. Permitiu unir o espírito do homem medieval, com a coragem do emigrante e com o desejo da aventura.

Esta comunicação pretende lançar um olhar especial a três elementos que têm um importante papel no caminho turístico de Belo Horizonte à Tiradentes. O primeiro elemento é a arte, em especial o trabalho escultório de Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), filho de arquiteto português e de uma mãe escrava (de origem supostamente moçambicana), que une a técnica europeia, o estilo africano, à matéria prima de Minas Gerais. As pegadas culturais de Aleijadinho permearam a trajetória de produção do documentário em questão. A primeira cidade visitada foi Congonhas do Campo, cidade que a “primeira vista”, não remete-se a um passado colonial a exceção do complexo arquitetônico do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, o qual encontra-se completamente preservado e guarda a obra prima de Aleijadinho: Os Profetas.

A construção histórica do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos apresenta-se como um “Abre Alas” para a comunicação intercultural da produção artística do Barroco Colonial de Minas Gerais, evidenciando suas profundas relações culturais com Portugal e com a África. O Santuário do Bom Jesus do Monte de Braga (Portugal) e o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, Minas Gerais (Brasil), possuem uma relação visceral. Aleijadinho recebe manuscritos, descrições e desenhos do Santuário Bracarense para esculpir e ornamentar as Capelas dos Passos da Paixão (somente sete passos em Congonhas), esculpir os Doze Profetas e o Escadório dos Cinco Sentidos. Embora em origem o universo simbólico religioso do patrimônio edificado de Congonhas do Campo e do Santuário de Braga sejam equivalentes, o universo simbólico representado em Congonhas está carregado da aculturação luso-afro-brasileira. O estilo arquitetônico da construção é legitimamente um “Barroco do Norte de Portugal”, o espaço geográfico foi minunciosamente selecionado para garantir verossimilhança com a paisagem Minhota.

Porém, o caminho que conduz às capelas dos passos de Congonhas é uma construção de pedras tipicamente africana, utilizada nas construções dos caminhos dos Orixás, lamentavelmente quase completamente destruídos pelos anos de colonização em solo africano (Penvenne, 1993). Portanto é possível elucubrar que a obra prima “Os Profetas” do mestre Aleijadinho estão dispostas em uma relação de evidência transcultural que permitiu o desenvolvimento de um estilo próprio, que não pode ser considerado como um Barroco Clássico, mas sim um estilo “Aleijadinho” que personifica a união entre as expressões simbólicas de Minas Gerais, Portugal e África1 (Henriques, 1998).

O segundo elemento a ser analisado será a possibilidade de reconfiguração turística através do imaginário, em especial a capacidade da arquitetura e do paisagismo em representar um local conhecido. Esta análise recorre a comparação arquitetônica entre as cidades do Norte de Portugal e as cidades de São João Del Rey e Tiradentes. Apesar das grandes similitudes, ainda, não se realizou um trabalho investigativo sobre a forma como estas cidades representam o Portugal do Norte. Em São João Del Rey, segunda cidade a ser visita na produção do documentário, evidenciou-se uma cidade que aos moldes da Cidade do Porto se constrói em torno de uma ribeira, e se edifica em ladeiras que expelem símbolos religiosos e imperiais. Vale destacar a forte presença da “Casa de Bragança” em São João Del Rey, desde a Guerra dos Emboabas, momento de grande migração dos Portugueses do Norte para a região central de Minas Gerais.

A Guerra dos Emboabas é um momento histórico para a formação cultural de Minas Gerais. As relações coloniais são subvertidas em prol de uma aliança que visava a garantia dos interesses de Minas Gerais sob os interesses dos Paulistas que estavam sobretaxando os alimentos para a região das minas. Durante esta guerra, houve uma grande emigração dos Portugueses do Norte para a região central de Minas Gerais, sendo que grande parte destes colonos jamais retornariam para Portugal, mas transformariam para sempre a cultura mineira. Não há como um português ou qualquer indivíduo que tenha conhecido a região Norte de Portugal chegar em São João Del Rey e não perceber de forma imediata a raiz portuguesa que existe nesta cidade. Da arquitetura ao sabor da cabidela (chamada de molho pardo em São João devido a influência africana na cozinha durante o período escravocrata), passando pela Ponte da Batalha (uma homenagem a Ponte de São Gonçalo do Amarante) os caminhos de São João Del Rey são uma (re)significação de uma herança cultural portuguesa (Xavier, 1998).

São João Del Rey ainda reserva uma grande particularidade cultural. Remonta a esta cidade uma tradição religiosa de origem Africana que se tornaria muito peculiar no Brasil: a criação de uma relação representativa entre Orixás e os Santos Católicos. Durante a efervescência do ciclo do Ouro e a expansão católico-jesuíta na região de Minas Gerais os escravos negros criaram uma (re)significação cultural dos ícones católicos de rara inteligência, como uma forma de resistência intelectual os escravos obrigados a seguirem os desígnios religiosos da Igreja Católica atribuíram a cada santo um orixá e desta forma quando estavam venerando um santo ou padroeiro católico de fato estavam remetendo-se a sua cultura religiosa de origem (Aguiar, 1999).

O terceiro e último elemento analisado pretende mergulhar em um dos principais baluartes do turismo, a gastronomia. Assim como nas artes e na arquitetura, a gastronomia do caminho de Belo Horizonte à Tiradentes apresenta-se como uma verdadeira explosão híbrida, construída a partir de uma matriz gastronômica do Norte de Portugal, miscigenada com tradições e sabores africanos, associados à produtos endêmicos da região central de Minas Gerais (Costa, 2005).

O grande representante desta miscigenação gastronômica é a cidade de Tiradentes, cidade que leva o nome de um Inconfidente Mineiro que foi executado, esquartejado e teve partes do seu corpo expostos no caminho de Minas Gerais ao Rio de Janeiro como forma de repressão aos desígnios independentistas que flanavam pelo Brasil no Século XVIII. Do ponto de vista arquitetônico, Tiradentes é uma representação das pequenas Aldeias do Norte de Portugal, é muito fácil confundir suas vielas e becos com as ruas de Viana do Castelo ou Ponte de Lima em Portugal. Resumindo, é uma bem preservada cidade colonial com profundos laços culturais com a região do Minho.

Durante o século XVIII os portugueses já erradicados no Brasil e uma grande massa de africanos (escravos), constroem o arraial batizado com o nome de Santo Antônio do Rio das Mortes, futura cidade de Tiradentes. A cidade que fica isolada pela Serra São José, acaba se fechando em uma comunidade ligada aos valores da terra e do quintal. As casas e fazendas de Tiradentes recebiam tropeiros e mineiros “de passagem”, criando desde os primórdios do Século XVIII um ponto de encontro gastronômico e cultural. Todos os viajantes e trabalhadores do ciclo do Ouro, de forma geral, estavam ligados à Santo Antônio do Rio das Mortes, sejam pelos caminhos da Estrada Real, ou pelo simples pouso na vila para trocar o metal precioso por mantimentos, objetos manufaturados ou animais.

O resultado desta vila fechada pelas montanhas e anfitriã de viajantes e comerciantes foi uma trama cultural que unia colonizadores, colonos e escravos em uma simbiose intercultural. Somente como ilustração, o artesanato criado na cidade une elementos de escultura em madeira tipicamente europeus com peças de barro moldados a mãos tipicamente africanos com pedra sabão (material endêmico de Minas Gerais). As representações barrocas da cidade unem elementos expirais com cores fortes como o amarelo e o vermelho típicos de festas religiosas africanas (Holanda, 1985).

A gastronomia que hoje representa um dos mais importantes atrativos turísticos da cidade (Tiradentes é um dos 12 locais onde ocorrem o Festival Internacional de Gastronomia), é resultado de uma miscigenação luso-africana aliada a escassez ou nulidade de ingredientes desta região de Minas Gerais. Os grandes pratos da culinária mineira unem receitas tradicionais portuguesas com temperos africanos e uma boa pitada de elementos endêmicos da região. A “Dobradinha com Feijão Branco” é uma releitura das “Tripas à moda do Porto”, “O Cozido à Portuguesa” deu origem ao “Frango com Ora Pro Nobis”, “O Caldo Verde” deu Origem ao “Caldo de Feijão”, e as “Alheiras” deram origem a famosa “Linguiça Mineira”, que está presente no Feijão Tropeiro e no Tutu de Feijão (Frieiro, 1966).

Outro detalhe fundamental na gastronomia Mineira é o uso do Quiabo, do Coco Ralado e do Leite Coalhado em vários pratos típicos. Estes elementos foram introduzidos pelos africanos e fazem parte do sincretismo gastronômico de Minas Gerais. Já os doces de Tiradentes que se espalhariam por toda Minas Gerais, apresentam um contraponto aos doces conventuais portugueses. Se em Portugal a abundância de gemas de ovos levou à uma doceria tradicional de fino sabor, a escassez das mesmas gemas é que seriam decisivas na reconstrução das receitas portuguesas em Minas Gerais. Grande parte das receitas mineiras substituíram as gemas pelo doce de leite ou pelo amendoim africano, como podem ser percebidos nos “canudos de doce de leite”, “ambrosia de doce de leite”, e no “pé de moleque” (doce de leite com amendoim e rapadura).

Ao finalizar o documentário na cidade de Tiradentes, uma grata surpresa revelou-se: o projeto que inicialmente seguiria os passos de Aleijadinho transformou-se em um caminho intercultural onde a ressignificação de elementos europeus africanos e nativos (de Minas Gerais), nos conduziram a um trajeto que muito supera os signos das artes e da arquitetura colonial. Este trajeto abre espaço para uma ampla discussão, especialmente no âmago dos Estudos Culturais, onde a pode ser discutido a identidade cultural mineira dentro de um caminho que vai de Belo Horizonte à Tiradentes, mas, faz longas escalas no Norte de Portugal e na África. Não é possível em pensar a identidade mineira sem pensar na construção de uma identidade plural que possui raízes culturais duradouras na Europa e na África (Ávila, 1967).

Por fim esta comunicação busca iluminar o turismo nas cidades coloniais mineiras, evidenciando as tensões culturais da contemporaneidade, atentando-se especialmente para as imbricações entre turismo, hibridez cultural e passado colonial. Estas tensões que se manifestam atualmente na esfera turística demonstram uma forma elementar de observar o passado colonial e escravocrata. A cultura mineira por sua história de superação e reconstrução de identidade criou um espaço cultural nas cidades coloniais que consegue contemporaneamente superar a relação de explorador e explorado, criando uma identidade híbrida entre os três principais pilares de sua formação: a cultura provinciana, a origem europeia e a influência africana.

1.1. Virtual representação/virtualização do século XV ao século XXI

O Renascimento representou um momento histórico de ebulição técnica, cultural e social. Posteriormente, a Revolução Industrial e a consequente reprodutibilidade técnica representaram um momento de profundas alterações da estrutura social e econômica decorrentes do advento da máquina e, por consequência, o início da substituição da força produtiva do homem pela máquina. Por fim, a metade final do século XX até a contemporaneidade do século XXI com o desenvolvimento, consolidação e capilarização da posse e do uso dos equipamentos informacionais (Desktops, notebooks, tablets, smartphones e IOT) e as consequências decorrentes da interação das redes com as imagens digitais que acabam por conceber a tecnologia capaz de virtualizar o tempo, o espaço e as formas de socialização humanas.

O establishment na produção de imagens em semelhança ao que olho pode ver somente seria rompido pelas “artes modernas”, especialmente, pelo advento do movimento impressionista. O paradigma técnico e estético amalgamado pelo Renascimento será interrompido de forma contundente apenas na ebulição tecnológica da Revolução Industrial quando, pela primeira vez, surge a possibilidade de a máquina simbolizar em imagem (ainda que modestamente) as construções materiais e simbólicas do homem.

Chega-se ao segundo momento a ser analisado: a Revolução Industrial e o início da capacidade do inorgânico substituir a capacidade produtiva do homem. Nessa época, a fotografia e, naturalmente, o cinema (o cinema é a fotografia em aceleração) passam a atuar como alternativas tecnológicas das virtualizações representativas, as quais eram produtos do trabalho manual desde o Renascimento (particularmente no que refere à pintura a óleo). É um momento histórico em que o capitalismo industrial e a tecnologia iniciam uma relação de entrelaçamento, a indústria cultural é um exemplo clássico da união entre o capital e a produção simbólica, dessa forma, a maquinização da produção torna a fotografia e o cinema mercadorias acessíveis, e as virtualizações das realidades passam agora a ser medidas pela tecnologia, pela máquina.

As transformações tecnológicas possibilitadas por estes dois campos alteram o status das obras de arte enquanto representantes das realidades (na proposta teórica deste trabalho, deve-se ler como representação da realidade, a virtualização) retirando das artes aquilo que Benjamin teorizou como “aura”, portanto, aquele elemento que a torna única, o experimento da contemplação do “aqui e agora” (Benjamin, 1992, p. 75). Transbordando o conceito artístico, Benjamin (1992) traz à baila os desdobramentos dessa revolução para a filosofia, para a sociologia e para a política.

A gama de possibilidades tecnológicas, inicialmente frutos da Revolução Industrial e em um segundo momento maximizadas pelas Grandes Guerras da primeira metade do século XX, modificou a dinâmica da representação “da máquina para o objeto”, a máquina não mais somente possui a capacidade de capturar o que o olho humano vê, mas por meio da tecnologia digital passa a ter a capacidade de criar um tempo-espaço que só existe em seu âmago. Essa é a dinâmica a ser apreciada com o surgimento do computador e da realidade virtual digital (Gomes Filho, 2008, p. 22).

O surgimento do computador e a sua consolidação como produto acessível inicia-se na segunda metade do século XX e prossegue até o século XXI na chamada era digital. Sob o advento da computação é possível a virtualização do tempo, do espaço e das relações humanas, concebe-se dessa forma a realidade virtual digital. A dinâmica das redes de computadores promove a virtualização completa das relações representativas, distorcendo a estética, rompendo a ética e subvertendo a produção artística contemporânea a uma arte também virtual.

Sob a égide do digital não é possível verificar qualquer relação de representação com a realidade, pois a realidade passa a ser digitalmente virtual, produzida por cominações numéricas, que não são possíveis de serem validadas dentro do que se concebe como realidade vivida ou imaginada. Aparelhos tecnológicos codificados por algoritmos constroem e (dis)simulam planos de realidades totalmente adversos e desconexos, a virtualização chega à era digital. Com o advento e a popularização das redes e dos computadores, as relações sociais tradicionais são colocadas em interrogação (Lopes, 2017).

A necessidade de estar presente e da existência física, as possibilidades de uma vida social democrática são parcialmente transferidas para a “razão medial” das telas dos aparelhos computacionais (Miranda, 1999, p. 297). A rede informacional pode ser conceituada como uma grande sociedade sem regras claras e definidas. As fronteiras precisam ser repensadas e os valores sociais perdem sua essência de origem. Nesse ponto é relevante pensar que o pacto social tradicional por meio do qual se abre mão de parcelas de liberdade individual em nome de uma liberdade social coletiva não se aplica às dinâmicas sociais das redes, o Leviatã está enraizado e disperso nas relações de poder que se criaram nas redes digitais, especialmente na internet.

É importante notar que o existir nas redes está majoritariamente ligado às imagens, dentro do universo da informática e da computação os sons e os vídeos são suplementos à imagem digital que é sempre majoritária e se apresenta como disponível e acessível. A explosão dos smartphones está diretamente ligada às respostas das imagens digitais ao estímulo dos dedos. Ao se acessar um computador, site ou e-mail a imagem digital se coloca à disposição para que seja inserida uma senha. Nas redes sociais o volume de postagem de imagens supera de longe a quantidade de arquivos de texto e de áudio. A imagem digital está tão disponível no universo tecnoinformacional, que em essência encontra-se em uma relação de prostituição gratuita, se oferecendo de forma vulgar, sensual e extravagante.

1.1.1. O virtual artístico: da arte renascentista à ruptura do Impressionismo

Argan e Fagiolo (1994, p. 67), em uma análise robusta e crítica, apresentam a pintura renascentista como portadora de duas características técnicas elementares ao que se refere à representação do espaço e do homem: a perspectiva e a técnica do jogo de cores.

Ao postular a respeito da imitação do real no Renascimento, Francastel (1990, pp. 12-17) teoriza que tal tentativa não é total nem única: conforme as técnicas progrediam, os valores metafísicos, culturais, ideológicos ou sociais faziam emergir inovações que alteravam as formas de produção até a superação do modelo renascentista. O grande terremoto nesse modelo técnico/ teórico e estético de representação será observado por meio da arte impressionista (Francastel, 1990, p. 43).

No Impressionismo, novamente, a evolução tecnológica está intimamente ligada à mudança das formas de conceber e virtualizar as realidades. As pinturas ao ar livre da escola de Barbizon somente puderam ser instrumentalizadas pelo advento da industrialização da tinta a óleo em tubos portáteis feitos de metal, o que possibilitou a portabilidade necessária para representar as paisagens (Coli, 1990, pp. 78-80).

A realidade virtual, sob um olhar artístico, pode ser relacionada às construções estéticas e filosóficas que permeavam as artes modernas. A sacralidade do objeto artístico e, notoriamente, das imagens é colocada em xeque nas artes modernas. Por conseguinte, a realidade virtual e a imagem mediada tecnologicamente estão em uma relação de simbiose com as rupturas representativas das artes modernas, destarte, a cisma com “o presencial” enquanto objeto de representação do verossímil e da aceitabilidade filosófica da mediação entre arte e tecnologia. Essa relação seria levada às últimas consequências com a consolidação da fotografia.

O advento da fotografia é apresentado na literatura da História da Arte como o “início do fim” do Movimento Impressionista, porém em uma análise multidisciplinar são os valores mercadológicos (Capitalismo Industrial) e sua visceral relação com o avanço da tecnologia os responsáveis pela real derrocada da representação impressionista. A fotografia e o cinema alteram semiologicamente as formas de se representar a realidade. O homem é substituído pela máquina (Francastel, 1990, pp. 76-78). A fotografia e o processo metafísico de transferir o olhar para uma lente constroem as estruturas técnicas e conceituais de contemplação da imagem capturada pela máquina. A imagem digital somente será teorizada a partir das mediações entre a imagem capturada pela máquina (neste caso, modificada digitalmente) e o usuário (observador) que utilizará a tecnologia como ferramenta de acesso e contemplação destas imagens.

1.1.2. Imagem técnica: a virtualização através do olhar das máquinas

A aurora da fotografia, nas primeiras décadas século XIX, ocasionou uma alteração contumaz nas formas de conceber as artes e as representações humanas. O conceito e as formas possíveis de realizar uma virtualização das realidades transformam-se em um artifício técnico, tal artificio se dava por meio da relação homem-máquina, a máquina fotográfica podia ser observada como a extensão do sentido da visão. A fotografia se torna um projeto de poder simbólico burguês, caminhando desde então par e passo em conjunto com evolução científica. A tecnologia fotográfica é o resultado de um esforço interdisciplinar, uma vez que une conhecimentos da Astronomia e da Física Moderna, em especial os experimentos referentes à câmara escura, inicialmente desenvolvidos para observar eclipses. De forma poética, a origem da câmara escura está em olhar para além dos limites do humano e não para ceifar-lhe a alma, conforme descreveram os primeiros críticos da técnica fotográfica. Com a câmara escura, surgia o princípio básico da fotografia. (Couchot, 2003, pp. 17-23).

À medida que o novo método de captura de imagens passou da esfera científica para a esfera social, a comunidade artística alardeou-se em protestos: a fotografia seria o fim da pintura e a morte das artes plásticas. O Impressionismo, embora inicialmente resistente, acaba realizando um diálogo com a fotografia o qual culminará em um manifesto modernista, no qual um dos principais postulados seria a alienação de representações realísticas enquanto objetos artísticos (Couchot, 2003, p. 331).

A fotografia alcançaria o status de obra de arte nas primeiras décadas do século XX, por meio do Pictorismo, movimento estilístico que propunha a fotografia como uma espécie de pintura (conseguiam este panorama utilizando recursos como a cor sépia e o foco brandado). Grupos de fotógrafos na Europa e nos Estados Unidos se uniram em grêmios para apresentar seus trabalhos ao grande público, pois os circuitos das artes ainda resistiam à proposta de uma exposição de fotografias (Argan & Fagiolo, 1994, pp. 320-356). Esse ponto é deveras interessante, a fotografia e obviamente o cinema são uma das poucas formas de arte que alcançam o reconhecimento do meio artístico, por meio do reconhecimento popular. Este pode ser considerado um dos primeiros valores morais da burguesia industrial: a meritocracia mercantil. A própria maneira social como os fotógrafos buscavam apresentar a fotografia refletia uma moralidade burguesa: uma forma de arte que representava a verdade e empregava o naturalismo liberal em sua composição.

A fotografia analógica, porém, sofre de um vício de origem: além da passagem da fotografia em escala de cinzas para uma escala de espectro visível (cores) ela pouco evolui, sua essência tecnológica é físico-química, portanto, seus paradigmas óticos não sofrem alterações sensíveis por quase um século. Um novo paradigma para a fotografia somente seria percebido com a incorporação da imagem digital. A imagem digital não depende exclusivamente da captura de um instante, instrumentação essencial para a fotografia analógica.

A fotografia digital subverte a relação entre a imagem capturada e o homem, pois não existem limites para a manipulação instantânea em uma imagem digital. Discutir a respeito de uma fotografia digital, portanto, é teorizar um conceito de imagem digital que nasce tecnicamente por meio da interação entre a imagem capturada, a imagem manipulada pelo homem por meio de um dispositivo digital e a perda de sua existência físico-química, passando a ser uma imagem numérica, sem tempo e espaço definidos e sem qualquer relação de originalidade. A única sobrevivência da imagem analógica na imagem digital é o valor simbólico, embora sob a influência de uma nova relação de significância, que na relação digital não é mais material.

Igualmente, o cinema pode ser considerado um desdobramento técnico e instrumental da fotografia. As imagens sequências do inglês Eadweard J. Muybridge, que reproduziam um mesmo corpo em movimento, através do zoopraxiscópio, transformavam uma sequência de 24 imagens em um vídeo. Este equipamento simulava uma velocidade em que as fotos em sequência “enganavam” o olho humano e transmitiam a sensação de que os objetos e corpos estavam em movimento (Couchot, 2003, p. 334).

A realidade virtual é chancelada pelo cinema. Provavelmente a maior discrepância entre a realidade virtual criada pelo cinema e aquela reproduzida pelo computador seja a metafísica do observador (do “eu” diante do objeto a ser contemplado). No cinema, a virtualidade imersiva é discursiva e seguirá um único curso, após se sentar diante de uma tela de cinema, caberá ao observador absorver um discurso visual com início, meio e fim já previamente estabelecidos. Em uma virtualidade computacional, como em um jogo digital ou uma visita virtual ao museu, a tecnologia torna-se ferramenta que permite ao usuário intervir no discurso e alterar a relação simbólica da mensagem por meio da interatividade mediada digitalmente. A interatividade digital abre um horizonte para a modificação da própria narrativa na qual o usuário está imerso: já não é mais plausível pensar em uma relação estática de um início, um meio e fim como nos roteiros de cinema. As narrativas tradicionais estão em interrogação em uma dinâmica digital.

Benjamin (1992), no ensaio A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica, elege o cinema como a arte redentora da própria arte. Benjamin apresenta o cinema como um aniquilador de elementos artísticos tradicionais, portanto, dotados de aura, concepção que denominava a originalidade e o valor de culto das obras de arte até então (Benjamin, 1992). Ao teorizar a respeito da fotografia, Benjamin clarifica que a nova técnica engendrava a comutação da memória involuntária pela memória voluntária. As fotografias do passado podem ser observadas para ativar novas lembranças (voluntárias). A partir deste conceito, é possível atribuir à fotografia uma nova forma capaz de virtualizar a práxis política, pois as fotografias “exigem ser acolhidas num certo sentido, e não se prestam mais à contemplação desinteressada. Elas inquietam quem as olha; para atingi-las, o espectador adivinha ter de seguir uma via específica” (Benjamin, 2006, p. 78).

Benjamin (1992), em uma primeira análise, mantem-se resistente em relação a uma suposta existência aurática na fotografia. Para o autor, a aura sobrevivia no rosto humano. As lembranças de entes queridos, todavia afastados, distantes ou desaparecidos em vida ou em morte, ainda substituíam a aura e lhes atribuía certa melancolia estética (Benjamin, 1994, pp. 67-102).

O cinema, no início do século XX, é o signo máximo da virtualização, portanto destinado à massificação. As telas apresentavam uma produção artística cujo espaço-tempo se aproximava do ideal valorativo do homem moderno. A virtualização ocorre no cinema como um rearranjo das relações entre tempo e espaço, ampliando a velocidade cognitiva da percepção por meio dos recortes estéticos, de simulacros, de cenas e atuações. A tecnologia cinematográfica inaugurava uma nova forma de fruir e refletir a realidade, estava inaugurada a “Estética da Máquina”.

Adorno e Horkheimer (1996, p. 144) criticam de forma veemente as alegações em favor do cinema de Benjamin (1994). Estes frankfurtianos dirigem suas críticas à arte e à técnica, da forma teorizada por Benjamin, colocando em interrogação o cinema como uma legítima expressão artística. De forma pontual, Adorno e Horkheimer (1996, p.145) criticam a massificação das representações proporcionadas pela (re)produtividade a qual, segundo os autores, abatiam o trabalho enquanto elemento criativo em favor de valores majoritariamente mercadológicos, os quais seriam os balaústres da homogeneização cultural.

Porém, Benjamin demostra, em seu texto, uma real aflição com os efeitos nocivos da reprodução, pois ele concedia a ela o carácter de “reprodução das massas sociais”, ou seja, seria a catalizadora das estratégias de controle e dominação (Benjamin, 1992). No início do século XX, o cinema como uma técnica visual de reprodução de imagens situava-se em um contexto de inestimáveis manifestações sociais e culturais, estando ainda sob a égide da Guerra. O cinema como elemento político - e em nome do Estado e da própria guerra - transformava o horror em um espetáculo virtual grandioso com o objetivo claro de solidificação hegemônico-ideológico e cultural das classes políticas despóticas.

Lançando um olhar contemporâneo ao texto de Benjamin (1992) pode-se concluir que a política iniciou, em seu tempo (primeira metade do século XX), a apropriação de caráter virtual do cinema, a qual jamais seria ideologicamente abandonada, basta verificar-se um dos pontos máximos do grande sucesso de bilheteria de 2019: Os Vingadores Ultimato. Nesta película o clímax é alcançado quando o personagem Capitão América é considerado digno pelos deuses de Asgard de utilizar o martelo do Deus Thor. Qualquer semelhança com a ideologia de supremacia de Donald Trump é mera coincidência.

Temos uma das questões fundamentais da reprodutibilidade técnica em Benjamin (1992): a estetização da política. Esta estava laureada na máquina como elemento reprodutor capaz de seduzir e manipular as massas por meio de imagens audiovisuais. Dessa forma o cinema é concebido como um espaço de espetacularização de ideologias e do consumo simbólico. Quando se reflete o cinema como um elemento de (re)produções de imagens, lançamos um holofote para um sistema virtual complexo; controvertido do ponto de vista artístico, social e tecnológico, em que as textualidades e o hipertexto das câmeras, as sobreposições técnicas desde o jogo luminotécnico, a manipulação dos cenários as abstrações sonoplásticas e todo um jogo de edições constroem um produto cultural com forte carga estética, ideológica e política.

O cinema projeta corpos e objetos visuais, todavia virtuais e imaginários; os dispositivos audiovisuais possibilitam o reconhecimento imagético como uma manifestação teleológica real, dinâmica e em estado de excitação. As produções cinematográficas transcendem a relação maniqueísta entre o real e o virtual, o visível e o invisível, o significado e o significante, gerando um produto cultural híbrido em sua essência técnica e fluido em suas as formas e os conteúdos.

É possível concluir que a fotografia e o cinema são reflexos do advento da Revolução Industrial e da consolidação ideológica do capitalismo e dos valores mercantis, os quais ansiavam por uma nova estética representativa. Desde a aurora da fotografia até a consolidação do cinema não houve qualquer alteração das estéticas representativas que alterasse a relação cultural entre o homem e a tecnologia como a ruptura estética, cultural e social decorrente da revolução da teleinformática que, com a popularização do computador e dos dispositivos informacionais portáteis, passa a simbolizar as representações e as realidades de forma completamente digital, transformando o virtual em sinônimo de ambiente concebido e pré-fabricado por meio da simulação computacional.

1.2. Conclusão

Um sistema digital, aos olhos da matemática e das engenharias, é um conjunto de estruturas eletrônicas com capacidade para processar, armazenar e/ou transmitir sinais que usam valores discretos (descontínuos), portanto, digitais (combinações 0 e 1) que podem ser interpretadas por máquinas e circuitos. Já os sistemas não digitais (ou chamados de analógicos) usam um intervalo constante de valores materiais (físicos) para manifestar a informação, ou seja, não há racionalidade numérica nem transmissão de valores exatos, é um sistema material. Embora as representações digitais sejam numéricas, a informação representada pode ser recodificada pelas máquinas, como números, letras, ou ícones, ou podem representar um fluxo digital continuo, como sons, imagens, outras medidas de sistemas contínuos.

Desde o advento da Primeira Revolução Industrial, com a maximização do corpo por meio do uso das máquinas, bem como da maximização da reprodução das linguagens, abre-se caminho para conceituar um cérebro fora do corpo, especialmente na externalização dos signos visuais e auditivos (fotografia, cinema, fonógrafos, gramofones). Esse processo de produção de sentido desencarnado intensificar-se-ia na revolução eletrônica (rádio, TV, vídeo, eletroacústica) e alcançaria níveis impensáveis na revolução teleinformática (computador, redes, telecomunicações), em que a digitalização dos signos passa a representar a relação de significado e significante em uma relação tecnológica. (Arantes, 2008, p. 27).

Stelarc (2007, p. 45) apresenta uma proposta teórica para o humano no século XXI, para este autor o ser humano alcançou um patamar na evolução digital em que não consegue mais lidar com o volume informacional e tomar ações necessárias à própria existência fora da realidade digitalmente mediada. Diferentemente de autores como Derrida, Maffesoli e Agamben, Stelarc (2007, pp. 45-54) propõe uma solução por intermédio da própria tecnologia, para ele é preciso criar próteses tecnológicas para realizar o que o corpo não é capaz. A única possibilidade estratégica para sobrevir a essa evolução seria suplantar o corpo com a tecnologia digital, criando um ser humano que de fato sejam um híbrido entre o orgânico e o inorgânico. (Stelarc, 2007, p. 48).

As representações digitais por meio das redes multiusuários apresentam ciladas para a subjetividade, pois tanto em humanos quanto em máquinas existem processos sígnicos que se hibridizam e podem ser percebidos tanto em sistemas orgânicos quanto em sistemas digitais (Santaella & Arantes, 2008, p. 70). Portanto, pode-se propor uma teoria sobre o funcionamento do individualismo e da coletividade no ambiente virtual, pois o sujeito que se encontra multiplicado em bancos de dados através de combinações de O ou 1, dissolvido e rematerializado em pontos diversos da rede é um sujeito transformado em luz, sendo que as telas são a forma como a coletividade existencial e o corpo digital podem ser experimentados e socialmente representados. Essa é forma como o digital age na transformação do corpo subjetivo em fluxos de luz e do corpo coletivo em telas. Essa existência, apesar da claridade que naturalmente a luz evoca, é uma existência mórbida e sombria: a coletividade pertence a uma dinâmica que está presente na etimologia do digital, pois um dedo pode ligar e desligar este templo imagético da coletividade.

A congregação do digital com as redes teleinformáticas possibilitaram a experiência de criar um simulacro da vida. As simulações numéricas e os jogos computacionais abriram a possibilidade para que as obras de arte, pioneiras das representações das realidades, se tornassem digitais e pudessem ser digitalmente fruídas. As visitas aos museus de forma virtual, as quais este autor se propôs a estudar há mais de 10 anos, expressam como a tecnologia digital se transformou em um presbitério da reprodutibilidade técnica. Mas é importante que se ressalte que o carácter local/ temporal dessa reprodução, quando proposto de forma digital, perde sua referência. Tal constatação é possível, pois o acesso digital não possui uma definição de tempo e/ou espaço, o limite está ao alcance dos dedos, e pode ser acessado de qualquer lugar a qualquer momento. Mas é importante observar que esta ausência de tempo espaço existente no universo digital soa muito mais como uma prisão panóptica do que como uma liberdade voyeurista.

Notas finais

1A técnica de escultura em Pedra Sabão utilizada por aleijadinho possui uma clara influência do talho em pedra utilizado pelos escravos africanos os quais utilizavam esta técnica nas tribos e reinos da África Setentrional.

Referências

Adorno, T. & Horkheimer, M. (1996). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Editora Zahar.

Aguiar, M. M. (1999).Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil colonial. São Paulo: IPE/USP.

Arantes, P. (2008). Arte e mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Editora Senac.

Argan, G. C. & Fagiolo, M. (1994). Guia de História da Arte. Lisboa: Editorial Estampa.

Arnheim, R. (1997). Arte & Percepção Visual: Uma Psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira Editora.

Ávila, A. (١٩٦٧). Resíduos seiscentistas em Minas: textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros/ UFMG.

Bauman, Z. (2008). Vida para consumo: transformações das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Editora Zahar.

Benjamin, W. (1992). Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d’Água.

Coli, J. (1990). O que é arte? São Paulo: Editora Brasiliense.

Costa, G. (Org.) (2005). Os Caminhos do Ouro e a Estrada Real. Belo Horizonte: Editora da UFMG.

Couchot, E. (2003). A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual (S. Rey, Trad.). Porto Alegre: Editora UFRGS. (Trabalho original publicado 2003).

Ferrara, L. D. ‘A. (1996). Turismo dos deslocamentos virtuais. In Turismo: Espaco, Paisagem e Cultura. São Paulo: Hucitec.

Francastel, P. (1987). Imagem, Visão e Imaginação. Portugal: Edições 70.

Francastel, P. (1990). Pintura e Sociedade. São Paulo: Editora Martins Fontes.

Frieiro, E. (1966). Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros.

Gomes Filho, J. (2008). Gestalt do Objeto: Sistema de Leitura Visual da Forma (8ª ed.). São Paulo: Escrituras Editora.

Henriques, I. C. (1999). A sociedade colonial em África: ideologias, hierarquias, quotidianos. In Bethencourt, F. & Chaudhuri, K. (Dirs.). História da expansão portuguesa. V.5 (pp. 216-274). Lisboa: Círculo de Leitores.

Holanda, S. B. (1985). Metais e pedras preciosas. In História da Civilização Brasileira - a época colonial. V. 2 (pp. 259-310). São Paulo: Difel.

Lévy, P. (2001). A conexão planetária. Rio de Janeiro: Editora 34.

Lopes, F. A. (2017). Imagem digital: Significação cultural do acesso virtual ao museu. (Dissertação de mestrado não publicada). Universidade FUMEC: Belo Horizonte.

Maffesoli, M. (1995). A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios.

Martins, M. L. (2011a). Crise no castelo da cultura: Das estrelas para os ecrãs. Coimbra: Grácio Editor.

Martins, M. L. (2011b). Technologie et rêve d’humanité. Les Cahiers Européens de L’Imaginaire, 3, 56-61. Retirado de: http://hdl.handle.net/1822/24245.

Marx, K. (2001). O Capital: Livro I - Crítica da Economia Política (18ª ed.). São Paulo: Editora Civilização Brasileira.

Melot. M. (2015). Uma breve história da Imagem (A. A. Alves, Trad.). V. N. Famalicão: Editora Húmus.

Miranda, J. B. de. (1999). Fim da mediação? De uma agitação da metafisica contemporânea. Revista de Comunicação e Linguagens, 25, 293-330.

Penvenne, J. (1993). Trabalhadores de Lourenço Marques: 1870-1974. Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique.

Santaella, L.& Arantes, P. (2008). Estéticas tecnológicas: novos modos de sentir. São Paulo: Editora Educ.

Stelarc. (2007). Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a protética, a robótica e a existência remota. São Paulo: Editora UNESP.

Todorov, T. (1982). Teorias do símbolo. Lisboa: Edições 70.

Vilches, L. (1997). Teoría de la Imagen periodística (2ª ed.). Barcelona: Paidós.

Xavier, A. B. (1998). El Rei aonde póde, e não aonde quer: razões da política no Portugal seiscentista. Lisboa: Edições Colibri.

Zunzunegui, S. (1989). Pensar la imagen (1ª ed.). Madrid: Cátedra.