Abstract
The film They Shoot Horses, Don’t They? (Sydney Pollack: 1969) based on the 1935 novel of the same title written by Horace McCoy describes the life of two young adults seeking for an artistic career. Gloria (played by Jane Fonda) dreams of being an actress in the emerging Hollywood industry. Robert (played by Michael Sarrazin) aims to be a director in Hollywood’s competitive world. Gloria and Robert meet and decide to participate in a Dance Marathon longing to win and, consequently, to accomplish their artistic dream. In effect, during the Great Depression, Dance Marathons that had emerged in the 1920s as a merit dance competition gained popularity as a “show” due to the duration of the performance (could last from a few hours to several weeks) and the physical and psychological endurance required to participate in the event. For those who battled (the dancers) meant the possibility of acquiring artistic and public visibility along with the pursuit of celebrity. For those who were audience it opened the opportunity to be voyeur of the human life, witnessing daily existence as an extraordinary experience. Hence, it can be argued that Dance Marathons puzzling the boundary between fiction and reality, can be understood as an emergent form of reality shows. Based on the analysis of the film They Shoot Horses, Don’t They? we aim to make a critical counterpoint between the phenomenon of Dance Marathons and the contemporary structure of talent shows within reality shows setup.
Keywords: Sociology of everyday life, Sociology of the body, Soiology of art, Dance Marathons, They Shoot Horses, Don’t They?
Introdução
O filme de Sydney Pollack They Shoot Horses, Don’t They? (1969) com argumento de James Poe & Robert E. Thompson a partir do romance de 1935, com o mesmo título, de Horace McCoy tem como cenário o fenómeno das maratonas de dança dos anos 30 e é uma parábola sobre a sociedade americana no que ela tem de desigualdade social e promoção da meritocracia. Através de um salão de dança de Los Angeles vamos vendo desfilar estereótipos sociais no limiar da sobrevivência: a concorrente grávida; a menina ingénua; o “promotor” chantagista, a enfermeira prestável e os dois protagonistas - uma aspirante a atriz e um aspirante a realizador de cinema. McCoy apresenta as maratonas de dança como se de um cenário apocalíptico se tratasse e Pollack irá corroborar esta visão dando força ao Pathos das personagens e ao destino individual da busca da celebridade que irá caracterizar o sonho americano. Com efeito, e como se desenvolverá ao longo do texto, as maratonas de dança dos anos 30, constituíram-se como o espetáculo performativo da Grande Depressão permitindo aos concorrentes a ilusão de atingir o sucesso, a celebridade económica e a visibilidade pública, logo de estar inscrito na esfera pública. Sendo as Maratonas de Dança um fenómeno circunscrito num período histórico de crise económica, este fenómeno espetacular inscreve-se na atualidade no fenómeno da Reality TV que legitima artistas (concursos de talentos). Nesse sentido, interessa-nos, analisar comparativamente estes dois fenómenos tendo como ponto fulcral a definição do artista ao longo da contemporaneidade bem como os mecanismos da sua legitimação.
Ser Artista
A dificuldade sentida na definição do artista deve-se, segundo Conde (1986), à forte ambiguidade e polissemia dada ao conceito de artista, que é tratado diferentemente por vários sistemas de classificação; o artista move-se num complexo de definições e classificações sociais a que não é alheia uma condição profissional sem cobertura jurídica ou corporativa precisa, condicionando a sua posição no mercado. A cumplicidade do círculo de pares e a heterogeneidade dos públicos são também fatores a refletir neste processo. Ser artista é também ter acesso a uma individualidade socialmente legitimada através da produção de práticas expressivas que lhe conferem um estatuto público e o situam socialmente. O artista pertence, então, a um grupo social produtor de visões do mundo; desta forma, ele encontra-se numa situação de individualidade regulada pelo valor cultural da originalidade/singularidade e regida pelo primado da experiência social da subjetividade. É esta noção de singularidade que colocará “problemas” à sociologia. Conde (1996) aponta os artistas como figuras de excepção que sociologicamente apelam a um individualismo situado, daí que a autora chame a atenção para a necessidade de, por um lado, procurar restituir configurações sistémicas que os situem coletivamente no espaço social e, por outro lado, que possibilitem a apreensão do fenómeno individualista/personalista, com ênfase no protagonismo do indivíduo. A individualidade e a singularidade são marca de identidade social e estética.
No entanto, se esta marca particular, feita de identidades e trajetórias pessoais, se pode aplicar diretamente às artes individuais, o mesmo não se passa tão diretamente em relação às artes coletivas performativas. Neste caso, a produção artística resulta de uma correlação de forças criativas em que a confluência de desempenhos é fundamental, embora cada agente envolvido invista em si próprio como recurso para a ação criadora. Não existe nestas situações uma singularidade pessoal, mas antes uma co-singularização interativa. Desta forma, cada criação individual está sujeita a um grupo e a uma reciprocidade de perspetivas, fazendo com que muito embora exista por vezes uma figura central (encenador, coreógrafo, cenógrafo, diretor, intérprete), o processo artístico seja um trabalho com várias assinaturas e que só no seu todo se torna “entendível”. A produção artística coletiva só é então viável pela existência de quadros de interação criativa e contextual que pautam as experiências intersubjetivas num mesmo sistema de referências, conferindo um sentido ao projeto. Note-se, no entanto, que é fazendo a ponte entre a trajetória subjetiva das artes individuais e a trajetória intersubjetiva das artes coletivas que o processo do trabalho de criação se assemelha. Cada criador/artista, quer se trate de artes individuais, quer se trate de artes coletivas, recorre sempre ao seu manancial técnico-expressivo, à sua capacidade criadora e à vontade de, através da sua função expressiva, dotar a obra de um novo sentido. Segundo Bourdieu (1996), a noção de artista-criador é fruto da “emergência progressiva do conjunto das condições sociais que possibilitam a personagem do artista como produtor desse feitiço que é a obra de arte” (p. 250). A este processo são inerentes, por um lado, a autonomia do artista (competências específicas e reconhecimentos), e por outro, a autonomia do campo (emergência do conjunto de instituições específicas que condicionam o funcionamento da economia dos bens culturais). Desta forma, o campo de produção cultural ocupa uma posição dominada no interior do campo do poder, sendo percorrido por dois princípios de hierarquização: princípio heterónimo, favorável aos que dominam económica e politicamente o campo, e princípio autónomo defensor da “arte pela arte”, em que o fracasso temporal surge como sinal de eleição e de sucesso. Assim, e ainda segundo Bourdieu (1996), pode-se falar de um princípio de hierarquização externa, em que o critério de êxito temporal será dominante, mensurável por um sucesso comercial ou notoriedade social. Neste caso, o primado será os artistas serem conhecidos e reconhecidos pelo grande público. No princípio de hierarquização interna o grau de consagração e de êxito mede-se pelo conhecimento e reconhecimento que o artista adquire junto dos seus pares. Pode-se então referir que, de acordo com o princípio autónomo, se defende uma “arte pura” com um grau elevado de independência, sendo as forças simbólicas favoráveis a uma maior autonomia do criador.
De acordo com o segundo princípio heterónimo, encontramos uma “arte aplicada”, em que o criador sofre mais diretamente as imposições e as sanções do mercado. Contudo, Bourdieu (1996) alerta para o facto de que, independentemente do grau de independência ou de subordinação, a criação artística não se conseguir dissociar do mercado, quer sendo por ele influenciada diretamente, quer mostrando desinteresse: Estas visões opostas do sucesso temporal e da sanção económica fazem com que haja poucos campos, exceptuando o próprio campo de poder, em que o antagonismo seja tão total. Nesta situação um dos indicadores mais visíveis da posição ocupada pelo artista no campo dirá respeito ao público. A qualidade social e cultural do público tocado pela obra reflete o capital simbólico que o público tem, permitindo o reconhecimento do valor do artista. Ainda de acordo com Bourdieu (1996), torna-se assim “critério fundamental de avaliação, a oposição entre as obras feitas para o público e as obras que têm de fazer o seu próprio público” (p. 250). Será então a dimensão e a qualidade social do público (marcado por diversas origens sociais, trajetórias, afinidades), que irão estabelecer uma categorização da arte. Surge assim uma arte comercial, mercantil e popular, e uma arte de vanguarda dotada de um reconhecimento superior (consagrada). Para Bourdieu (1996), esta lógica de consagração vai influenciar decisivamente a trajetória do artista.
De facto, se o sucesso do artista pode ser medido pelo seu êxito comercial ou notoriedade social, o não sucesso revela-se mais ambíguo. Segundo este sociólogo, o não sucesso deve ser entendido em dois sentidos: o do artista “falhado”, em que nem o sucesso temporal nem o valor artístico são reconhecidos, e o do “falhado” provisório, em que existe o reconhecimento do seu valor artístico por parte dos pares. Em ambos os casos, estamos face ao “artista maldito”, em relação ao qual se confere uma existência reconhecida ao desfasamento entre o sucesso temporal e o valor artístico. É nesta ambiguidade de critérios de sucesso que se confunde o fracasso relativo e provisório do “artista maldito” com o fracasso puro do “falhado”. Para Bourdieu (1996), esta separação é sempre ambígua e incerta, fazendo com que o artista, perante a indeterminação, aumente e alimente o nível de incerteza sobre o seu valor artístico fazendo ainda com que se possa verificar um retraimento dos possíveis. Neste sentido, a margem de liberdade do artista revela-se na forma de um espaço de possíveis, isto é “um conjunto de imposições prováveis são a condição e a contrapartida de um conjunto circunscrito de usos possíveis” (Bourdieu, 1996, p. 262).
Então, a liberdade criativa não existe em sentido absoluto, uma vez que o artista se encontra condicionado por um código específico de comportamentos e expressão. São estes códigos de criação que vão enquadrar a margem de liberdade do artista em relação às imposições objetivas que o campo propõe; desta forma, não será o artista o produtor de valor da obra de arte, mas sim o campo de produção que detém o poder de atribuir o valor à obra, produzindo assim a crença no poder criador do artista. Na perspetiva de Bourdieu (1996) a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico, dotado de valor após ser socialmente instituído como tal. E isto só é possível através do reconhecimento da obra por espectadores dotados de disposições e de competência estética para atribuição de valor; no entanto, este processo de reconhecimento só é legitimado através do “conjunto dos agentes e das instituições que participam na produção do valor da obra através da produção da crença do valor da arte em geral e no valor distintivo desta ou daquela obra de arte” (p. 259).
Esta crença no valor da obra irá implicar lutas na definição e classificação de fronteiras, potenciando desta forma o estabelecimento de hierarquias; isto faz com que o campo artístico se caracterize por uma permeabilidade de fronteiras, diversidade de definição do gosto e princípios de legitimidade. Em relação ao artista esta realidade leva a uma indefinição de postos, logo, a um lugar incerto no espaço social, resultando daí futuros incertos e dispersos. Por esse motivo, Bourdieu (1996) afirma que os artistas muitas vezes não podem assumir a função que consideram principal, a não ser na condição de terem uma profissão secundária de onde extraem o seu principal rendimento. A incerteza e a indefinição de um lugar social para o artista convidam-nos a refletir sobre a especificidade da sua identidade. De tal reflexão surgem noções como subjetividade e individualidade, que se traduzem no paradigma da singularidade da figura do artista. Este paradigma remete-nos para as noções de vocação e dom – condição inerente à capacidade expressiva e criativa – e para a noção de carreira – condição de sucesso, legitimidade e aceitação –. O artista estrutura-se, assim, através de uma socialização formal/escolar, em que adquire as técnicas, os códigos e os instrumentos necessários ao trabalho artístico e através de uma socialização informal, em círculo de amigos e em circuitos fechados de grupos, em que sob o nome de talento/dom adquire e legitima a capacidade de autoexpressão identificadora do trabalho criativo. Nesta perspetiva, Conde (1994) refere que quando se trata do acesso à identidade dos artistas, a relação “andar na escola” – “entrar na profissão” – “fazer carreira” é descontínua e desarticulada. Ou seja, por um lado, luta-se pela existência da noção de profissão ou carreira definida institucional e juridicamente; por outro, reclamam-se para a identidade artística critérios subjetivos de dom/vocação ou talento que contrariam os critérios gerais de acesso às restantes profissões (diplomas, contratos). Assim, ser artista não é algo que se aprenda na escola, mas antes é uma “profissão de dom”, exigindo-se ao aspirante a artista uma certificação e aceitação por aqueles que já o são. Então, e de acordo com os modos de organização da profissão e dos modos de reconhecimento da identidade do artista, a noção de dom está sempre presente no imaginário e nas práticas de atribuição e seleção do exercício da profissão, chegando intacta à contemporaneidade e aliando-se agora a uma nova noção de mercado. Desta forma, a imagem contemporânea do artista pretende conciliar os valores mercantis, instrumentais e os valores estéticos-expressivos.
Este fenómeno leva, como refere Moulin (1983), à inversão nas lógicas de produção artística, pensadas agora num ciclo curto, com visibilidade imediata e voltadas para o mercado. Opera-se, assim, a deslocação do registo estético para um registo circunstancial, pautado pela pertinência social e económica da produção, passando agora o artista a pautar-se por outros critérios de legitimação. Como afirma Melo (1988), passa-se de uma situação de “legitimação pela obsessão para uma situação de “legitimação pela circunstância”, em que o artista é um criador social, integrado no mercado e atento à sua carreira, que ele gere “oportunamente”. Desta forma, o valor ou qualidade do artista resulta da estreita ligação entre ele próprio e os agentes do sistema, principalmente mediadores e distribuidores. O estatuto e a identidade do artista implicam uma profissionalização dos criadores, que passam a organizar-se em associações síndico-corporativas, valorizando-se os agentes mediadores. Verifica-se igualmente a tendência para a especialização das organizações culturais de produção e distribuição, que se traduzem em novas relações de trabalho, nas quais o tempo de criação se processa muito mais rapidamente. Passa-se, assim, de um tempo cronológico (o do criador livre) para um tempo tecnológico, no qual o artista tem de ser gestor.
Em relação à situação profissional observa-se, no seguimento de Conde (1994), que por um lado o artista tenta ganhar um estatuto análogo ao de outros perfis profissionais, com a inerente credibilidade ética, social e política junto de instâncias de regulação nacionais e supra nacionais; por outro lado, continua a colocar-se a questão específica das “profissões artísticas”, pautadas por uma “personalização de competências”, em que a individualidade do artista é definida por critérios subjetivos e informais. Estas duas perspetivas acabam necessariamente por ter, como refere Conde (1994), repercussões importantes na avaliação social da condição do artista. Paralelamente, surgem mudanças no estatuto “universitário artístico”, como aumento de graus académicos e especializações e com uma maior divisão social do trabalho cultural/artístico aumentando igualmente o número de indivíduos que optam pela via de ensino artístico; contudo, o acesso à profissão está circunscrito por leis próprias do mercado e, principalmente, pela “circunstância”. Enquanto o aspirante a artista espera a aprovação da sua identidade, recorre frequentemente a situações de pluriemprego, no qual o ensino adquire a primazia, perpetuando-se assim o ciclo.
Desta forma, ao artista, nesta era de “legitimação pela circunstância”, é pedido que reconfigure a sua singularidade (condição de se ser artista) num contexto de grande concorrência que garanta a sua permanência no campo artístico. Ainda segundo Conde (1996), o artista da era da circunstância vive na era da “criatividade situada”, em que, para justificar a sua singularidade, necessita de uma parcela de obsessão, de génio, de talento e de vocação. Igualmente os artistas passaram a ser socialmente representados como emblemáticos, “criadores de sentido”, sendo procurados pela atenção pública e política para efeitos sociais “úteis”. Assim sendo, a imagem do artista é contraditória. Por um lado, a profissionalização levou à desvalorização do artista em relação à “obsessão romântica”, promovendo a cultura profissional dos artistas e o ideal da “cidadania normal”. Por outro, a funcionalidade com que foram investidos nas sociedades contemporâneas aponta para uma “re-sacralização”, conferindo-lhes um estatuto de exceção, de “Ser” dotado de uma condição incomum.
Este processo terá, como refere Conde (1996), um duplo sentido: minorar a desinserção ou lateralidade social dos artistas, em primeiro lugar; em segundo, reconhecer a sua instrumentalização social. Verificamos, então, que o artista vive num projeto de indeterminação pessoal, entre a apologia da autonomia distintiva do indivíduo face ao meio (projeto de singularidade necessário para se ser reconhecido como artista), e a tensão permanente para entrar no mercado de forma produtiva e com sucesso. Este efeito fica a dever-se ao mercado, que obriga o criador a entrar nas suas redes e que faz simultaneamente uma gestão de percurso e um investimento em si próprio, na sua capacidade de inovação e de criação. Neste quadro, como sustenta Conde (1996), a carreira, condição de sucesso na qual se procura conciliar a “singularidade” do criador com um reconhecimento formal e informal da sua identidade, passa então pelas “condições institucionais” que “fazem um nome”, que levam do anonimato relativo à mediatização, e de circuitos nacionais ao estrelato internacional. Verifica-se uma crescente aproximação entre a esfera do económico e a esfera do simbólico (impulsionada pela transformação na divisão social do trabalho cultural e artístico), tal como se verificam mudanças na avaliação social das respetivas profissões. Ser artista hoje implica uma carreira, implica sucesso, tendo em conta que a noção de carreira se reporta às condições institucionais, passando por um percurso hierarquizado do anonimato relativo à grande mediatização.
Assim, aos valores artísticos pessoais do criador (guia simbólico da ação), alia-se o valor definido pela “monetarização”, pelo preço das suas obras no mercado, pela aceitação mediática que tem. Nestes novos modos de estruturação do mundo da arte e da cultura, em que sobressai o desenvolvimento do sector das indústrias culturais, a tendência será para a diversificação das profissões culturais e artísticas, em que a avaliação da condição do artista se altera, fruto de novas reorganizações nas hierarquias do campo intelectual e artístico. M. Santos (1994) chama a atenção para o facto de que a crescente profissionalização dos artistas, a que não é alheia a diversificação e o alargamento do mercado de bens e serviços culturais e artísticos, não se traduz numa alteração significativa da situação do artista em relação aos rendimentos auferidos (altamente irregulares), à segurança dos contratos (carácter provisório), à durabilidade da carreira (cada vez mais marcada pela imagem e pela moda), e às taxas de subemprego, pluriemprego e desemprego. Observa-se ainda a tendência para cada vez mais a obra e o artista, para além de um valor simbólico, adquirirem um valor comercial, regulado por um poder económico.
Este facto remete-nos para a constituição do mercado autónomo como forma dominante de organização cultural, que institui o espaço público como o espaço privilegiado na relação entre oferta e procura, onde a promoção, a difusão e a comercialização têm um papel fulcral. Ora esta relação implica para o artista a necessidade de um apoio de cariz económico maioritariamente assegurado pelo Estado e pelo mecenato. Neste sentido, Becker (1994) refere a importância de enquadramentos de base económica que forneçam meios de lançamento aos artistas, que lhes permitam a divulgação e a difusão capazes de configurar com sucesso uma carreira. Para que isto seja possível, é necessária uma rede de apoios institucionais, uma capacidade de intervenção mediática, e uma ótima rede de produção e difusão. Assim, definir a identidade do artista implica, como observámos, a reconstituição de todo um espaço mais lato, que influencia, potencia e determina o projeto artístico. Temos então de operar um esforço de análise, que sai do âmbito intersubjetivo e individual (referido como condição quase exclusiva de se ser artista) para um âmbito mais abrangente, que abarca diversas lógicas e onde se joga a imagem, o reconhecimento e o valor do artista (porquanto veicula a crença do artista enquanto cidadão de excepção).
O artista procura, desta forma, construir a sua identidade socioprofissional num jogo entre a singularidade (desejo de exprimir uma determinada visão do mundo, de si) e a normatividade (desejo de ser reconhecido pelo meio artístico, por um conjunto lato de receptores). Neste sentido, o artista procura gerir a sua singularidade em função de uma expectativa de enquadramento e de reconhecimento no campo artístico. O artista passa, assim, a funcionar numa criatividade situada, em que pretende legitimar o seu projeto artístico em função da sua subjetividade, dos condicionalismos impostos pelos seus pares (reconhecimento do seu valor e pertinência artística), e do mercado (que cada vez mais tem um papel decisivo na produção/difusão da obra de arte, assim como na projeção do artista); isto, sem esquecer o confronto com o público, que é o interlocutor privilegiado a quem o artista se dirige e de quem espera um reconhecimento.
Ser Artista: visibilidades para o sec. XXI
Nathalie Heinich (2012) ao analisar o capital de visibilidade do artista no séc. XXI alerta para uma questão fulcral: a visibilidade artística oscila, na contemporaneidade, entre uma noção de elite cultural e uma meritocracia individual. Este fenómeno tem vindo a crescer convidando à reflexão do conceito de Fenómeno Social Total definido por Marcel Mauss (1950). Pese embora, continuemos a definir o Fenómeno Social Total como uma atividade global com implicações em todas as áreas do social, organizando internamente as instituições; atualmente os fenómenos totais trazem à tona o conceito de diferenciação social. Note-se que, à partida, a diferenciação social é positiva numa era que se quer democrática: avaliar os alunos de acordo com o seu desempenho; esperar numa fila a nossa vez, apoiar e proteger os mais frágeis, etc. Ou seja, a diferenciação é uma forma de se assegurar a justiça social.
Obviamente, falamos da ideologia de uma sociedade democrática onde a igualdade cívica e civil é proclamada, bem como a igualdade de direitos e acesso à cultura. Nesta era democrática a tensão entre os valores da igualdade e a percepção de que, cada vez mais, assistimos a situações de desigualdade social, cria um desconforto global. A constatação da desigualdade social leva-nos a questionar um conceito chave da democratização cultural: A Meritocracia. Surgem, neste contexto, dois modos de operação no mundo: de um lado a denúncia da desigualdade e, do outro lado a justificação da desigualdade. O século XXI (até à data) potenciou no artista ocidental o recurso ao segundo modo operandi – a justificação da desigualdade. Note-se que não podemos analisar este fenómeno dissociado da possibilidade técnica da reprodução da obra de arte. Efetivamente, a reprodução da obra de arte despoletou mecanismos de uso público da imagem que, necessariamente, trazem novos modos de validação e legitimação do artista.
É de notar que a legitimação do artista acontece, atualmente, entre o reconhecimento da excelência e a glorificação da igualdade. Note-se que este processo de legitimação surge, como já tivemos oportunidade de analisar, com a institucionalização da arte, assumindo-se igualmente o estatuto do artista alicerçado no seu talento pessoal e não no seu lugar de classe, ou seja alicerçado na ideia liberal de meritocracia. Como se constrói uma teoria democrática de excelência? Este é o grande problema social que paira desde o séc. XIX não só nas instituições políticas como também nos princípios axiológicos democráticos. Note-se que os artistas potenciaram sempre esta noção de excelência como ideal democrático, veiculando o ideal da singularidade, e da exclusividade. Nesse sentido, podemos avançar com a proposta que, no séc. XXI, o estatuto do artista define-se entre a singularidade e a excelência por mérito. Este sistema, baseado na vocação é também operacionalizado na área da investigação científica que, à semelhança da arte, se sustenta na axiologia meritocrática. Esta axiologia meritocrática implica a passagem (de forma algo ritualística) de alguém que detém por mérito externo “carreira e estatuto” a alguém que detém o estatuto público através do que concretiza e faz (investigação, criação artística, etc.).
Note-se que esta mudança de paradigma implica, igualmente, uma outra transição que será capital no discurso artístico dos séculos XX e XXI: a passagem de uma vida interior para uma vida pública e visível. E o que vai distinguir o artista ou intelectual será essa visibilidade legitimada que oscila entre vocação e sorte circunstancial. As carreiras artísticas, embora sujeitas a competências específicas, estão essencialmente alicerçadas na expressividade subjetiva, singularidade e originalidade, logo menos regulada por regras coletivas e institucionais. Esta é a razão pela qual a arte se torna um conhecimento e prática alicerçada num sistema que privilegia a singularidade. Note-se que a noção de meritocracia surge de uma combinação entre a noção de aristocracia (a excelência é inata), a democracia (todos têm o mesmo direito) e meritocracia (depende do talento individual) e é a articulação entre estes três indicadores que irá definir o estatuto do artista na era moderna, estatuto esse repleto de contradições.
Apesar da contradição será o estatuto do artista que articula e coordena todas as áreas da vida social ao proclamar o valor social através da trajetória individual (a partir da articulação dos conceitos: aristocracia; democracia e meritocracia) o que por sua vez irá legitimar o poder da sociedade democrática. O que irá comparar a arte à aristocracia é, por um lado, a noção do carácter inato do talento (vocação que vem do nascimento) e, por outro lado, o facto de este privilégio de nascimento ser alocado não a um individuo, mas a toda uma categoria de seres humanos (os artistas). Esta dupla entrada da identidade artística vai reafirmar a ideologia democrática ao religar a noção de um talento inato ao direito global a ter acesso, através do mérito e esforço pessoal (meritocracia), a um determinado lugar público. Podemos afirmar que o que aproxima a aristocracia da democracia será o mérito pessoal reconhecido socialmente, traduzindo-se na noção de que todos têm os mesmo direitos no acesso a um lugar social. Do seu lado, o mérito pessoal vai depender de dois vetores: talento inato; trabalho. Note-se que esta noção de excelência artística pode coloca a tónica no “Ser Singular” e consequentemente renuncia à integração social no que ela poderá ter de institucional.
Ou seja, o artista detém um privilégio democrático de mérito que não se alicerça num poder aristocrático (de marca de lugar social) ou poder burguês (integração plena na sociedade democrática). Podemos classificar os artistas em três tipos, sendo que cada tipo se articula em dimensões axiológicas acima referidas: O artista da “alta-sociedade” que incorpora uma aristocracia de origem sociocultural; o artista “comprometido” que incorpora os valores meritocráticos e democráticos; o artista maldito que incorpora os valores da singularidade e individualidade. Assim, os três pilares do valor social serão: privilégios (aristocracia); mérito individual (democracia); dom (talento e vocação).
Maratonas de Dança
As maratonas de dança mais do que um espetáculo de entretenimento, constituíram-se como uma forma de vida. Com efeito, as maratonas de dança, sendo uma forma artística de competição e entretenimento, resultam da excentricidade, excesso e frivolidade dos anos 20 e são reinventadas nos anos 30 tornando-se um símbolo da luta meritocrática que vai caracterizar os Estados Unidos durante a grande depressão. Com efeito, entre 1928 e 1934, as maratonas de dança revelaram-se uma das maiores formas de entretenimento popular.
Com a maioria da população em condições económicas, sociais e emocionais no limiar mínimo da sobrevivência, as maratonas de dança traziam o encantamento de assistir a “alguém comum” a superar limites físicos e emocionais num registo supra-humano, mas, principalmente, era, para quem assistia, a representação performativa das cruéis condições de vida e dos indivíduos que tinham coragem de a desafiar. Para os concorrentes, vencer significava ganhar dinheiro e a esperança de melhorar de vida. No entanto, independentemente de se perder ou ganhar, a maratona de dança revelava-se o momento em que se tinha abrigo, comida e estabilidade num mundo confuso. Embora definida como Dança, as maratonas de dança não eram só um acontecimento artístico, mas, igualmente, um fenómeno social.
O objetivo era ver quanto tempo um par aguentava dançar sem parar e isto exigia uma energia e determinação limites. Inicialmente, as maratonas de dança eram, como já apontámos, o resultado dos anos 20 e do excesso e celebração que caracterizam esta época. O conceito subjacente a estas maratonas era simples e ingénuo: uma busca de fama através de um record físico. Nos finais dos anos 20 e início dos anos 30 a crise alterou o conceito das maratonas de dança que passaram a ser uma luta pela sobrevivência. Na era da grande depressão os concorrentes das maratonas usavam o seu corpo como instrumento para alcançar sucesso económico, pese embora os promotores dos concursos controlarem os concorrentes, logo essa aquisição de bem-estar económico era algo utópica. Em relação aos espectadores, eram várias as motivações para assistirem às maratonas, alguns tinham família ou amigos a participar; outros fruíam a exigência do concurso. Note-se que a ligação entre participantes e público era estreita: a maratona de dança implicava música, dança e dramas pessoais. Facilmente os participantes, através dos seus dramas pessoais, tornavam-se ídolos. Nesse sentido, os espectadores identificavam-se com os concorrentes “vivenciando” as suas perdas e vitórias como se da sua vida pessoal se tratasse.
Então, podemos assumir as maratonas de dança como meta representação no sentido em que se constituem como um ritual cénico com uma funcionalidade social que, aliás, cumpre o desígnio aristotélico da identificação e catarse. O concorrente mostrava ser o que o espectador queria fazer, mas não era capaz. Nesse sentido, o espectador identificava-se empaticamente com o concorrente e através dele examinava a própria vida. Os bailarinos revelavam-se modelos de otimismo, força e vontade. Obviamente, quando o concorrente por quem tinham empatia ganhava, então era também uma vitória pessoal. Os espectadores assumiam um papel de testemunha empática da trajetória dos bailarinos. Note-se que os concorrentes perdedores também eram alvo de testemunha empática nem que fosse através da categoria catártica “ainda bem que não fui eu a perder”. Os espectadores (testemunhas empáticas) estavam também na condição de “perdedores” no sentido em que eram, também, vítimas económicas e sociais. Aliás, o tempo que tinham para acompanhar as maratonas, semana após semana, era sintoma do desemprego vivido. Assim, quando estes espectadores choravam ou torciam pelos bailarinos, choravam e torciam também por si mesmos e por todos presentes no público. Ao testemunharem a luta dos concorrentes os espectadores ganhavam uma perspectiva reflexiva da sua existência.
A catarse que acompanhava este ato de testemunhar a dança libertava tensões e ajudava a lidar com as tragédias pessoais. A maratona de dança é, então, um espetáculo teatral, mas como Turner (1982) defende, a vida ao imitar a arte através da representação social inaugura micro comunidades cénicas. A maratona ao desenhar um espaço de palco-dança e de observação – testemunha faz com que cada comportamento se torne performativo e cénico. Num tempo em que muitos americanos lutavam por sobreviver ao colapso económico, as maratonas de dança providenciaram um espetáculo perfeito uma vez que refletiam os triunfos e dificuldades da existência. Igualmente, as maratonas celebravam a essência humana e a prova que a vitória necessita de esforço e, tal como na pista de dança, na vida o sucesso também será possível. Sem ser este o propósito deste artigo, note-se que as maratonas de dança desempenharam um papel fulcral na emancipação feminina. Efetivamente, o universo das maratonas de dança contrariava o “silêncio feminino” a que socialmente as mulheres estavam votadas. Através das maratonas, as mulheres puderam afirmar a sua resiliência e afastarem-se definitivamente do papel feminino estereotipado. A participação no circuito das maratonas exigia às mulheres que se comportassem de formas pouco ortodoxas socialmente e em paridade com o masculino.
Vai para a pista de dança e esquece os teus problemas
O romance de Horace McCoy They Shoot Horses Don’t They? é um excelente documento ficcional sobre o fenómeno das maratonas de dança e os seus agentes retratando plenamente os seus sonhos, resiliência, resistência e falhanços. O romance escrito em 1935 reflete o cenário vivo das maratonas de dança e, nesse sentido, quer a maratona descrita no romance, quer as personagens ecoavam vivamente nos leitores da época. Gloria e Robert, protagonistas deste romance noir, eram reconhecíveis enquanto plausíveis concorrentes nas maratonas. McCoy retrata as maratonas como sintoma de uma era de privação económica, social e emocional bem como desespero dos concorrentes em atingir celebridade, e melhores condições económicas. Com as maratonas de dança semi esquecidas, o romance foi adaptado ao cinema por Sydney Pollack em1969. Note-se que em 1940 houve uma tentativa de adaptação cinematográfica do romance para pelicula, mas Hollywood achou que à data ainda estava muito presente a temática e iria tornar público a “vergonha social” e a miséria.
Quando Pollack faz o filme ganhou não só a admiração do público como da Academia tendo, o filme, sido largamente premiado. No filme, Pollack descreve bem as maratonas de dança como símbolos da América da Grande Depressão, mas foca-se nas personagens centrais que serão apresentados numa dimensão heroica, representativa da sociedade americana em busca de meritocracia. O foco, na versão cinematográfica, vai para a vida dos dois jovens concorrentes que vêm na maratona de dança uma possibilidade para uma carreira artística. Gloria (interpretada por Jane Fonda) sonha em ser atriz na indústria emergente de Hollywood; Robert (interpretado por Michael Sarrazin) quer singrar como realizador de cinema num meio altamente competitivo. Os dois conhecem-se e decidem participar na maratona com o intuito de ganhar (saindo da situação económica deplorável) e, igualmente, realizar o sonho artístico. Como sabemos, Gloria e Robert retratam a vida dos perdedores no registo limite da frustração e revolta que culminará no assassinato de Gloria por Robert. O filme nota, de uma forma brilhante, a vulnerabilidade e incerteza da existência daquelas personagens e da linha frágil que separa a vida sonhada (ficcional) da parca condição de vida (realidade). A resiliência e a capacidade de suportar humilhações e dores é o ponto central da temática do filme, como aliás também é do romance.
They shot horses don’t they? é uma obra cinematográfica que documenta um drama social transversal a várias épocas e fala dos limites possíveis da existência humana. Neste contexto, a maratona de dança surge no filme como pano de fundo que retrata o universo macro da sociedade norte americana. Quer na década de 30, quer na década de 60 (ou já finais dela) há um convite ao “homem comum” para representar a sua existência numa arena próxima do palco teatral. Neste contexto, à melhor representação é dado um prémio, a celebridade efémera e o acesso a “Ser Artista”. Na última década do séc XX e, de forma galopante no início do séc XXI, começamos a encontrar “maratonas artísticas” em concursos e outros formatos de Reality TV e estes programas atraem largas audiências. Programas tais como The Voice, Got talent, So you think you can dance, The Greatest Dancer, entre outros, permitem a concorrentes e espectadores atingir os mesmos objetivos das maratonas de dança: sucesso, fama e melhoria económica por parte dos concorrentes; identificação, catarse e empatia por parte dos espectadores. Embora, aqui, encontremos uma inovação, o público acresce ao papel de testemunha empática a função de avaliador e de júri.
Ou seja, será pela participação ativa na “escolha” do talento que o público toma parte do sucesso do outro. Os concorrentes, à semelhança dos concorrentes das maratonas dos anos 20, estão, essencialmente, motivados pela ideia da fama e da celebridade mais do que pela ideia de “necessidade económica” que caracterizará as maratonas dos anos 30. Claro que o prémio económico se revela capital. No entanto, não estamos face a classes sociais desfavorecidas economicamente, mas, antes, a uma classe média, média baixa que, em muitos casos, tem acesso a uma educação formal. A noção de Reality TV e Reality Show ganhou popularidade a partir da década de 90 do séc. XX. Embora o paradigma seja um outro, do ponto de vista da recepção mantemos duas características similares às maratonas de dança dos anos 30: O fascínio pela resistência dos concorrentes, uma busca de entretenimento e o desejo de testemunhar um outro (em tudo similar a nós) que aceita correr riscos, expor-se e mostrar a sua capacidade performativa. Note-se que, comparativamente às maratonas de dança dos anos 20 e 30, a noção de espetáculo artístico ganhou expressão, bem como a avaliação do talento dos concorrentes.
A jornalista Cynthia Crossen (2005) compara as maratonas de dança e os reality shows focando-se no exemplo do filme They Shoot Horses Don’t They? e no concurso televisivo American Idol. A autora alerta que a diferença essencial entre os dois formatos é que, enquanto no filme They Shoot Horses Don’t They? a motivação para atingir a fama é o desespero e a miséria, nos formatos atuais de concursos de talentos o objetivo é atingir a fama movido por um otimismo militante. No entanto, gostaríamos de realçar que, embora a realidade económica da Grande Depressão seja incomparável com a vivida atualmente, os concorrentes destes formatos de concursos, bem como o segmento social da audiência dos mesmos, reflete um grupo social com limitações de acesso a determinadas situações sociais. Neste contexto, a Reality TV ao ser muito pouco “real” vai aumentar o processo de desigualdade de acesso.
Será um mero “simulacro de meritocracia” que dura o tempo de uma temporada. Há que notar que, enquanto que nas maratonas de dança, público e concorrentes, se encontravam na mesma deplorável situação económica e, nesse sentido, testemunhar alguém a dançar faria com que o ânimo pessoal aumentasse (pelo simples ato da fruição); os atuais concursos de dança mostram fortes clivagens sociais e económicas geradoras de revolta e desigualdades. Embora, e frisamos uma vez mais, tanto as maratonas de dança, como os atuais concursos têm um objetivo similar: a possibilidade de, através da demonstração de um talento específico e/ou capacidade de resiliência, conseguir uma oportunidade única de mudar a vida. Podemos, então, afirmar que embora o canal tenha mudado de um espetáculo presencial – ao vivo; para um espetáculo reticular – televisão, a noção de “drama real” é a atração principal do espetáculo.
É possível que o público destes “concursos de fama” não tenha qualquer vontade em concorrer mas entendem e apoiam o desejo de fama que pode advir do mediatismo televisivo e idolatram quem não tem medo de se expor. Efetivamente, há algo de hipnótico em observar pessoas comuns a lutar por uma oportunidade de serem reconhecidas e atingirem um patamar de celebridade. Nos anos 20 e 30 era numa pista de dança, hoje é na televisão. Saliente-se que ambos os formatos – maratona de dança e concursos televisivos são sobre a humilhação e a perda. Há só um vencedor, um par vencedor ou uma equipa vencedora.
Os vencidos são numerosos e o seu fracasso é alvo de ridicularização em esfera pública. O interesse do espectador varia entre a glória de quem vence, mas, igualmente, sobre os dramas de quem perde. Será este o enredo que mantem o público fiel semana após semana. Para que a identificação seja eficaz usam-se atores sociais estereotipados: o homem gay; a senhora simpática, o adolescente prodígio, o homem empreendedor, etc. Estas personagens (construídas a partir das personalidades dos concorrentes) serão o garante de um retrato social que se sabe eficaz na criação de “ficções de quotidiano”.
Assim como as maratonas de dança eram eficazes porque retratavam “tipos familiares” com quem nos identificávamos plenamente, os concorrentes do formato Reality TV constroem personagens para servir os ratios de audiências. Assim, com um mínimo de compromisso financeiro e sem risco pessoal, o espectador pode testemunhar dramas pessoais e vivenciar a vida de um outro. Note-se que a “luta pela fama” tem a sua aproximação ao coliseu Romano onde gladiadores arriscam a sua vida. Sendo que, nos modelos atuais de maratonas o espetador torna-se também no Imperador que, com uma chamada telefónica decide a vitória.
Vai para a pista de dança e esquece o Sonho Americano
Como já referimos, encontramos similitudes entre as maratonas de dança e formas atuais de concursos de talento. Com efeito, enquanto “veículo comunicacional” tanto as maratonas de dança como os concursos televisivos funcionam como um espetáculo de entretenimento de massa. Com a particularidade que, no séc. XXI, a televisão transformou-se num meio intrusivo e constante de “voyeurismo” e de atribuição de visibilidade e legitimidade (valor meritocrático) num continuum de informação e novidade. Reafirmamos que, na nossa perspectiva, as maratonas de dança e os novos formatos de Reality TV cumprem os mesmos objetivos: apresentam candidatos que se auto superam e se colocam em constantes desafios, criam “tensão dramática” despoletando nos espectadores situações catárticas e, consequentemente, dão a esses mesmos espectadores razões para terem esperança na noção de meritocracia e na possibilidade da visibilidade.
Assinala-se que a, Reality TV, bem como os Produtos de Concursos televisivos que se propagaram no séc. XXI despoletaram um novo paradigma comunicacional e de fruição cultural. Estes produtos revelaram-se eficazes para promover a visibilidade dos concorrentes, na sua maioria cidadãos comuns que concordaram com uma exposição pública extrema resultando num compromisso maior, ou mais leve de comprometer a sua imagem e vida privada. Estes produtos televisivos alargam o espectro da distribuição do capital de visibilidade a novos setores da escala social que raramente têm oportunidades ou recursos para se tornarem públicos e/ou visíveis, uma vez que não detêm os mesmos códigos culturais das classes privilegiadas.
Desta feita, estes novos agentes são admitidos na passadeira vermelha das pessoas famosas embora sofram severas restrições nessa entrada sobre holofotes. Estes agentes/performers que inundam estes programas são frequentemente de classes sociais com menor acesso económico e cultural, mas também artistas que se vêm vedados na entrada no campo artístico. Este novo cenário permite, então, que pessoas aparentemente “excluídas” consigam, através da televisão, ascender socialmente e afirmarem-se artisticamente. Esta ascensão acontece, geralmente, quando a avaliação chega do público e não de um júri de especialistas. Este público provavelmente projeta através do seu voto, os desejos que tem para si próprio, elegendo alguém que lhe é similar. Note-se que o desenvolvimento e consolidação da comunicação social constituiu-se num tremendo veículo que potencia e alimenta as nossas expectativas de celebridade quer através da observação da vida das estrelas, quer através da possibilidade de nos igualarmos a elas por um período/tempo determinado. De facto, é veiculada a ideia de que cada um pode ser um herói ou alguém célebre ou, pelo menos, ter reais possibilidades de sucesso, por exemplo através da participação em concursos televisivos. Efetivamente, este novo fenómeno de celebridade televisiva embora não seja totalmente democrática é claramente menos elitista ao dar a possibilidade de visibilidade a todos. O fenómeno da celebridade surge como algo democrático e de entretenimento.
Ou seja, em relação ao modelo tradicional de elite que nomeava a celebridade como alguém com poder, com conhecimento e talento (artistas, modelos, intelectuais, etc.), estas celebridades televisivas representam uma elite democrática que incorpora o tal falado “Sonho Americano” do “self made man” que escapa à pobreza e obscuridade e, por mérito próprio, conquista celebridade, prestígio e influência. Qual será a justificação para esta nova meritocracia baseada num valor social e que nos remete para a realidade das Maratonas de Dança dos anos 30: Nathalie Heinich (1999) investigou esta questão e apresenta-nos vários sentidos para a noção de mérito. Segundo a autora, o regime democrático que se estabeleceu na pós-revolução francesa iria fazer do mérito uma das noções basilares da sociedade. No final do século XX chegou-se a um compromisso entre o ideal de mérito e a “proteção de determinado estatuto”. No entanto, a noção de mérito contempla duas variantes a saber: Merecimento; aptidão. E estas duas possibilidades envolvem a dualidade entre trabalho e talento, entre um esforço ativo e um dom passivo. Efetivamente, existe uma forte herança na cultura ocidental que permite a dual construção axiológica do mérito que, em última instância, vai solidificar a tradição democrática da meritocracia e que vai nomear alguns como privilegiados, legitimando a celebridade que seria “admirada” por todos.
Assim entendido, visibilidade é a forma democrática de ter poder não por uma autoridade transcendente ou divina, mas, antes, pelo voto de seres humanos que nomearão quem é mais popular e não talentoso. O público é, agora, uma entidade especializada e já não tem o caracter de povo, conceito tão caro á tradição proletária. Note-se que esta nova realidade sociológica que torna transcendente qualquer produto surgido da atividade de quem afirma “gosto” constitui um modo de inteligibilidade que é adotado totalmente na sociedade contemporânea e que marcará o acesso à arte e à identidade artística. A nova inteligibilidade significa acessibilidade: o mundo cultural deixou de ser critico para querer chegar a todos, embora tenha muita dificuldade em chegar a quem se sente discriminado. E serão esses discriminados que irão surgir na ribalta das novas celebridades sendo votados e legitimados pelos seus pares.
E esses a quem o público dá a vitória acabam por deter um mérito que chega do merecimento. Isto porque quem vota atribui valor social aos diferentes concorrentes e esse valor social vem de um lugar de admiração, do lugar de elite. Note-se que estas novas formas espetaculares (concursos de talentos) continuam a reafirmar as dicotomias: de um lado temos o júri de especialistas (presentes em estúdio) que correspondem ao modelo cultural da meritocracia e do outro lado temos o “júri não especialista” (que vota de casa) que reage pelo instinto e de forma autêntica. E será no diálogo entre estas duas forças que o valor social é dado a alguns dependendo do “entretenimento” e grau de exposição que esse agente despoleta no público e nas audiências. Note-se que a noção de celebridade implica alguém que é famoso e alguém que o admira e tem prazer em reconhecê-lo (identificando e confirmando) publicamente. E esta noção da identificação e confirmação é mais importante do que a justificação da fama. Neste sentido, o valor social dado aos é experienciado como uma forma de desigualdade. Ou é justificada por alguma forma de sacrifício (como por exemplo a integração social) ou transcende qualquer necessidade de justificação ao preencher uma necessidade humana: a necessidade de admirar quem achamos ser maior que nós.
Here they are again, folks! These wonderful, wonderful kids! Still struggling! Still hoping! As the clock of fate ticks away, the dance of destine continues! The marathon goes on, and on! How long can they last! (…) It isn´t a contest. It’s a Show.
Horace McCoy, in They Shoot Horses, Don’t They? (1935)
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